"A saúde precisa deixar de ser apenas uma agenda de emergência"
A ministra da Saúde, Nísia Trindade, defende o fortalecimento do SUS como resposta aos desafios do setor. Em entrevista à Folha Saúde, ela anunciou a intenção de reduzir as filas de espera em 45% até o fim do ano
Qual o diagnóstico que o ministério faz da saúde pública do Brasil?
O quadro que encontramos na transição de governo era desafiador. Tivemos um conjunto de retrocessos desde 2016, com o desmonte de uma série de políticas e a degradação da autoridade sanitária e do papel coordenador do Ministério da Saúde, sobretudo durante a pandemia de Covid-19. Isso se refletiu nos indicadores de saúde. Tivemos, no período, a redução da taxa de coberturas vacinais, com alto risco de reintrodução de doenças como a poliomielite, e o aumento acentuado das filas de exames, cirurgias e outros procedimentos. Na saúde infantil, houve o retorno de internações por desnutrição e a estagnação da mortalidade infantil, enquanto na saúde materna vimos quase que dobrar as taxas de mortalidade materna, um dado inadmissível. Houve grave descaso com a saúde da população nesses anos, em uma verdadeira política do abandono.
O que foi feito nos primeiros meses de sua gestão?
Nesse contexto, a primeira fase de nossa gestão foi, sobretudo, de reconstrução, com avanços. Buscamos reestabelecer o papel de coordenação nacional do Ministério da Saúde, com a retomada da relação interfederativa com estados e municípios, a recomposição do orçamento da saúde, para a qual a PEC da Transição foi fundamental, e a recuperação de diversas políticas bem-sucedidas, aperfeiçoadas a partir dos aprendizados com sua aplicação.
Esse período envolveu, portanto, a retomada do Mais Médicos, do Farmácia Popular, Brasil Sorridente, Saúde na Escola, a criação do Departamento de Saúde Mental e o fortalecimento dos CAPS e da RAPS, o incremento do Complexo Econômico-Industrial da Saúde, o relançamento de campanhas de vacinação, reunidas no Movimento Nacional pela Vacinação, que tem por finalidade recuperar as altas taxas de cobertura vacinal. Com o Programa Nacional de Redução de Filas, pretendemos reduzir as filas de cirurgias em 45% até o fim do ano. Todas essas retomadas precisaram ser conciliadas com a resposta a emergências, como a própria Covid-19, a crise Yanomami e os desastres socioambientais, nos litorais de São Paulo e da Bahia, na região Sul e agora com as secas e queimadas na região Norte, que também afetam populações indígenas e vulnerabilizadas.
Entre tantas necessidades da saúde pública no Brasil, quais as prioridades do ministério?
Para responder a tantos desafios, precisamos avançar ainda mais no fortalecimento do SUS para que sua resiliência seja um fator determinante de preparação e prevenção. A saúde precisa deixar de ser uma agenda apenas de emergência. Por meio do Comitê Interministerial para Eliminação de Doenças Socialmente Determinadas, queremos eliminar até 2030 doenças como a tuberculose e a malária, alinhados com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). Pelo Mais Médicos, devemos chegar a 28 mil médicos até o fim do ano, a fim de cobrir os vazios assistenciais e fazer a atenção primária, porta de entrada do SUS, chegar a todos os brasileiros. Vamos conferir uma atenção destacada para a atenção especializada, para a qual estamos formatando uma política específica, e o Novo PAC irá dar um impulso para a universalização do atendimento e de serviços, como o SAMU, além de permitir a construção de Unidades Básicas de Saúde, Policlínicas e Maternidades, o fortalecimento do CEIS, a preparação para emergências sanitárias e a transição digital. Nosso objetivo com esse impulso é nos aproximarmos o máximo possível dos valores centrais do SUS, de universalidade, integralidade e equidade.
O Programa Nacional de Imunizações está completando 50 anos, com um histórico de unificação do calendário de vacinação. Há algum planejamento para os próximos anos no setor?
Esses 50 anos merecem ser celebrados. Graças ao PNI, contribuímos para erradicar a varíola no mundo, eliminamos doenças como a poliomielite no país e controlamos uma série de outras. O PNI já fez o Brasil ser referência em imunização no mundo, quando, a partir dos anos 90 até a metade da década de 2010, tivemos nossa população protegida com taxas de vacinação exemplares. São essas taxas que queremos reconquistar com o Movimento Nacional pela Vacinação. Mais do que de campanhas pontuais, precisamos da mobilização permanente de toda a sociedade para voltar a alcançar esse objetivo.
Para isso, lançamos a estratégia inédita do microplanejamento de campanhas, orientada pela OMS, um investimento de R$151 milhões que visa adaptar as ações de vacinação às realidades de cada estado e município, identificando áreas mais descobertas e mobilizando estratégias e comunicadores locais. As campanhas estaduais acontecem até o final do ano.
Celebramos estes 50 anos de PNI reafirmando que a ciência voltou e que a retomada das altas coberturas vacinais é tema prioritário do governo do presidente Lula. Estamos comprometidos com o combate à desinformação e à hesitação vacinal, querendo unir o país e mostrando que, se de um lado, vacinas salvam vidas, inversamente, a desinformação põe em perigo a todos nós, coletivamente, a começar pelas crianças e adolescentes. As famílias são fundamentais nessa proteção.
Como enfrentar e amenizar, em conjuntos com estados e municípios, a crônica falta de leitos hospitalares e as longas filas nas emergências públicas em todo o país?
Os últimos anos, de fato, agravaram muito o problema das filas, que já eram um desafio histórico no SUS devido ao subfinanciamento. Estima-se que R$ 60 bilhões deixaram de ser investidos no SUS desde 2016. A pandemia levou a um represamento acentuado dos procedimentos. O resultado foi a situação preocupante que encontramos na transição, para a qual não dispúnhamos sequer de dados para avaliar sua magnitude. Hoje, sabemos que são mais de um milhão de procedimentos represados.
Buscamos tratar disso desde o início de nossa gestão, lançando o Programa Nacional de Redução de Filas, com investimento de R$ 600 milhões a serem aplicados em três etapas. A retomada do diálogo com estados e municípios tem sido fundamental e, em junho, todos os estados e o Distrito Federal já haviam recebido recursos para apoiar a realização de cirurgias eletivas, na primeira etapa do programa. A expectativa é reduzirmos 45% das filas até o final do ano, com a destinação de R$ 200 milhões.
E como estão os investimentos nos hospitais filantrópicos?
Temos investido também nos hospitais filantrópicos 100% SUS, que respondem por 60% de nossos atendimentos e internações de alta complexidade. Aumentamos os recursos em R$ 82,6 milhões por ano, garantindo investimento total de R$256,7 milhões por ano para essas entidades. Ainda estamos ampliando o Mais Médicos, para chegarmos a 28 mil médicos pelo programa, e a infraestrutura da saúde será beneficiada pelo Novo PAC, com a universalização do SAMU e mais de 3 mil Unidades Básicas de Saúde, o que nos permitirá alcançar 73,1% da população, percentual muito próximo da população que depende exclusivamente do SUS, além de novas policlínicas e maternidades.
Como está sendo a retomada dos investimentos públicos em pesquisa no Brasil? Quais as prioridades do ministério no setor?
A ciência é um instrumento de geração de valor, de inovação, de riquezas, de soluções para os desafios nacionais, de inclusão social e melhoria da qualidade de vida. Ao longo de 2023, o Ministério da Saúde atuou em diversas frentes para que pautas intersetoriais e interministeriais fossem retomadas. Apresentamos uma Estratégia Nacional para o Desenvolvimento do Complexo Econômico-Industrial da Saúde, o CEIS, para o qual a pesquisa e a inovação são fundamentais e pelo qual esperamos chegar, em 10 anos, à produção nacional de 70% dos bens de saúde necessários ao SUS. Essa estratégia de reindustrialização por meio da saúde tem investimento previsto de R$ 42 bilhões para ações de diversos tipos, incluindo pesquisa. Nesse sentido, também retomamos a publicação de editais e chamadas públicas para pesquisas em saúde, com a previsão de cerca de R$ 250 milhões em 2023 em parceria com o CNPq. Temos estabelecido ainda parcerias com atores internacionais para incentivar a pesquisa de cientistas brasileiros em inteligência artificial, a fim de desenvolver ferramentas de atendimento e gerenciamento, como parte da transição digital do SUS, contando para isso com um investimento de R$ 2,5 milhões.
A qualificação dos profissionais é também uma ponte entre ciência e saúde. Um exemplo disso é a oferta de especialização, mestrado e doutorado como atrativo no programa Mais Médicos. Nossas ações concretas ao longo do ano mostram que a ciência e a tecnologia são insumos estratégicos para o desenvolvimento nacional e contribuem para o acesso aos direitos fundamentais básicos, como a saúde.