CRÍTICA: "Cão sem plumas", da Cia de Dança Deborah Colker, mergulha em nossas origens
Espetáculo, que fez sua estreia ontem e emocionou a plateia que lotou o Teatro Guararapes, ganha última sessão neste domingo
Foi da lama que viemos e para a lama voltaremos, parecem nos lembrar os bailarinos da Cia de Dança Deborah Colker durante "Cão sem plumas", espetáculo que teve sua estreia mundial ontem, no Teatro Guararapes, no Centro de Convenções de Pernambuco.
Ou seriam eles pessoas que durante uma hora e dez minutos se transmutaram em caranguejos, para nos lembrar - entre inúmeras outras críticas a problemas sociais, econômicos, políticos - como tratamos pessimamente um dos nossos principais rios, o Capibaribe, os nossos recursos naturais, o nosso povo?
A dúvida fica latente na mente do espectador mesmo horas depois de ter visto a adaptação da obra do poeta João Cabral de Melo Neto para o palco. "Cão sem plumas", por Deborah Colker e com a participação do elenco na criação das coreografias, pode ser menos acrobático que os espetáculos anteriores da coreógrafa, mas ainda exige dos artistas uma força descomunal. Para subir, descer e entrar nos caçuás de madeira do cenário, para carregar uns aos outros.
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Eles são 13 em cena, mas vão e voltam em tantas formações e grupos diferentes que parecem ser algumas dezenas. Um pequeno exército para nos lembrar da nossa identidade relegada a um último plano, de que somos o leito do rio seco e o barro craquelado, os mangues e suas vegetações com raízes expostas e devastadas, os moradores em palafitas à beira do rio. E a nós mesmos viramos as costas, esquecendo nossa essência, ignorado o que em Pernambuco nos é único e plural.
A produção veio depois de uma residência artística em que eles passaram quase um mês em Pernambuco, visitando cidades e, principalmente, a paisagem do Sertão ao Litoral. Além de dar veracidade ao espetáculo, esta vivência o torna ainda mais intenso, seja na androginia do elenco, já que eles se vestem apenas de lama e da própria pele, quase nenhum figurino para dançar.
Seja no caráter único que a obra ganhou - por retratar com fidelidade dos caranguejos ao homem do Sertão, das garças do mangue ao cão sem plumas de que fala o poema ("um cão sem plumas é mais quem um cão saqueado; é mais que um cão assassinado (...) é quado a alguma coisa roem tão fundo até o que não tem", dizem versos do poema cabralino).
Por mais que o elenco dê a ideia de um grupo único, compacto e onde quase não há solistas, vale destacar as atuações de Olivia Pureza, da uruguaia Rosita Gil, ex-solista do Ballet Nacional Sodre, em Montevidéu, e do angolano Dilo Paulo.
Marcantes também as aparições do músico pernambucano Cannibal, com seu cabelo de dreadlocks e corpo bem torneado de bailarino mesmo sem sê-lo, que caminha pelas palafitas e abraça uma cobra em uma das cenas. E para a própria Deborah Colker, que é a última a surgir na tela de projeção, encarando a plateia com um olhar profundo, mergulhada em lama.
Publicado pela primeira vez em 1950, o texto de João Cabral soa mais do que atual. É uma montagem bonita de se ver, pela excelência da equipe escolhida por Colker para trazê-la à tona, com nomes que vão do cineasta Cláudio Assis, cuidando do filme em preto e branco que corre em pararelo à dança; aos músicos Jorge du Peixe, Lirinha e Berna Ceppas, que cuidaram da trilha sonora. Todos pernambucanos, exceto por Ceppas.
Também é importante ressaltar Gringo Cardia, parceiro da companhia desde sua fundação, e responsável pela cenografia e direção de arte. Parte deles subiu ao palco, ao lado de Deborah Colker e da editora de imagem Natara Ney, ao final da sessão, quando o elenco ovacionado, com aplausos do público que ficou de pé para reverenciá-los por alguns minutos. Inez Cabral, 68 anos, filha de João Cabral, estava presente à sessão de estreia e depois foi à rua do Apolo para confraternizar com Colker e a equipe.
Mesmo com o nervosismo natural da estreia, o elenco estava afinado, dançando com emoção. Se houve erro na coreografia, passou sem maiores danos ao conjunto. O que poderia ser revisto são algumas das narrações do poema, com algumas palavras que não se entende direito quando são ditas.
Antes de seguir para temporada nacional após esta estreia em Pernambuco, o espetáculo ganha a última sessão neste domingo (4), às 20h, com ingressos a partir de R$ 25 (meia-entrada, no balcão) e R$ 40 (meia-entrada, na plateia).
Aqui no Guararapes, as sessões tiveram audiodescrição pela VouVer Acessibilidade. E quem comparecer pode levar roupas e agasalhos para serem doados para as vítimas das chuvas que castigaram o Estado nas últimas duas semanas.
Ainda neste domingo, a montagem será tema de especial no programa de televisão "Fantástico", da Rede Globo.
E segue para mais três cidades brasileiras: no dia 19 de julho, chega ao Festival de Joinville, em Santa Catarina. De 27 a 30 de julho, ocupa o Theatro Municipal, no Rio de Janeiro. E de 25 de agosto a 3 de setembro, no Teatro Alfa, em São Paulo.