BRASIL

Para aprovar reforma tributária, governo aceita derrota nos vetos do marco temporal e mira o STF

Planalto aposta no Supremo Tribunal Federal para barrar projeto sobre demarcação de terras indígenas

Presidente Lula - Marcelo Camargo / Agência Brasil

Após construir um acordo com a oposição para viabilizar a votação da Reforma Tributária, aprovada ontem no Senado por 53 votos a 24, o governo já contabiliza uma derrota no projeto do marco temporal para a demarcação de terras indígenas, tema caro à esquerda, com a derrubada dos vetos impostos pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao texto. O Palácio do Planalto dá como certo este revés e aposta no Supremo Tribunal Federal (STF) para barrar a tese, já considerada inconstitucional pela Corte.

Com o caminho tortuoso no Senado, que aplicou derrotas recentes ao governo, Lula reuniu líderes partidários no início da semana para pedir empenho pela aprovação da reforma, um dos itens principais da agenda do ministro da Fazenda, Fernando Haddad. A articulação política preparou o terreno para a votação das mudanças nas regras de tributação do país, ao mesmo tempo em que abriu caminho à análise do veto ao marco temporal, prevista para daqui a duas semanas. Há sessão do Congresso hoje, mas a tendência é que seja votado apenas um projeto que abre crédito extraordinário para sete ministérios, em um total de R$ 15 bilhões.

O marco temporal foi aprovado com amplo apoio na Câmara e no Senado. Entre os deputados, foram 283 votos a 155; no caso dos senadores, 43 a 21. Os principais pontos, no entanto, foram barrados por Lula, e agora a bancada ruralista lidera o movimento que deve culminar na reversão da decisão do presidente.

Na segunda-feira, em reunião com senadores, Lula disse, segundo parlamentares presentes ao encontro, que era “seu direito vetar e direito do Parlamento derrubar o veto”. Na saída da reunião, o líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), revelou que, para facilitar a aprovação, o Planalto havia concordado com a votação sobre o marco temporal.

Em plenário, no dia seguinte, Wagner voltou ao assunto enquanto a Casa se debruçava sobre um requerimento que permitiria a análise mais célere da reforma. A oposição, que chegou a obstruir votações recentes, se organizava para impedir esta votação.

— Não fizemos nenhum tipo de troca, mas foi feito um pedido, e eu disse ao presidente: “É melhor que a gente amenize o ambiente. A questão é cara e, se a oposição tiver voto, ela vai derrubar seu veto. É do jogo da democracia”. Então, eu estou só dizendo, sem cobrar reciprocidade, que não foi esse o espírito. Eu quis criar um ambiente melhor — disse Wagner no plenário da Casa.
 

Após a intervenção, foi aprovado o caminho para uma tramitação mais rápida, possibilitando a aprovação ontem. A margem, no entanto, foi curta: apenas quatro votos a mais do que o necessário para endossar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), caso da Reforma Tributária. A oposição votou em peso contra o texto, e o governo teve dificuldades também em partidos da base: PP e Republicanos, com um ministro cada, entregaram apenas dois de seus dez votos.

A ofensiva contra o texto teve a participação do ex-presidente Jair Bolsonaro, que pediu aos senadores do PL que tentassem convencer aliados de outras legendas a votarem contra o projeto. Bolsonaro chegou a visitar o Congresso ontem e, em plenário, o PL deu dez votos para barrar o texto — houve um a favor e uma abstenção.

No caso do marco temporal, que estabelece que só podem ser demarcadas terras que indígenas ocupavam até a promulgação da Constituição de 1988, o quadro é mais complexo, e a derrota é vista como irreversível.

Entre os vetos que podem ser passíveis de negociação há o item sobre a obrigatoriedade de indenização aos proprietários de áreas em disputa. A bancada ruralista defende um projeto sobre esse tema, já em tramitação no Congresso, que poderia ser usado como moeda de troca para manter a decisão presidencial.

Parlamentares da base acreditam também que há margem para se manter o veto à possibilidade de contato com povos indígenas isolados para “prestar auxílio médico ou para intermediar ação estatal de utilidade pública”.

Uma ala da bancada ruralista, no entanto, defende derrubar inclusive os vetos aos chamados “penduricalhos” do texto, como o acesso a povos isolados e a possibilidade do plantio de transgênicos, como uma forma de marcar posição.

—O governo vai ser derrotado na votação dos vetos. A bancada vai manter o que o Congresso decidiu, na Câmara e no Senado — disse o líder da bancada ruralista, deputado Pedro Lupion (PP-PR).

No Planalto, há também uma avaliação que o ônus de estabelecer o marco temporal, uma iniciativa que tem repercussão internacional, ficaria com o Congresso. Além disso, o governo avalia que o STF, provavelmente, será novamente provocado a se manifestar sobre o tema e poderia derrubar os efeitos da lei com o argumento de que ela fere a Constituição.

Série de derrotas
Caso a derrota se concretize, será a mais nova de uma lista que tem episódios recentes, como a rejeição do Senado à indicação de Igor Roque para a chefia da Defensoria Pública da União (DPU). No encontro com senadores, Lula demonstrou incômodo, segundo parlamentares, com o desempenho do governo no Senado. Além da DPU, ele citou a aprovação por margem mais estreita do que havia sido projetado do projeto de lei que restabelece o voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), visto como essencial para aumentar a arrecadação da União.

O Planalto também vê com preocupação a PEC que limita decisões monocráticas e pedidos de vista no STF. O texto foi aprovado em 42 segundos na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e está em discussão no plenário. Em seguida, a Casa quer avançar com o projeto que estabelece mandato para ministros da Corte.

No Executivo, há preocupação sobre o risco de essas pautas criarem atritos entre os Poderes, conturbando o cenário político e dificultando o andamento de temas que podem ter impacto positivo na imagem do governo.

O provável resultado no marco temporal é ainda um revés para a ala da ministra Marina Silva (Meio Ambiente) no governo, que também reúne a titular da pasta dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara. Marina viu sua pasta perder atribuições com a reconfiguração da Esplanada aprovada pelo Congresso em junho. Em outra frente, os parlamentares aprovaram esta semana a lei orgânica das Polícias Militares, que teve a oposição de Marina e dos ministros Silvio Almeida (Direitos Humanos) e Cida Gonçalves (Mulheres). (Colaborou Gabriel Sabóia)

Trechos Vetados

Marco temporal: Estabelece que só podem ser demarcadas terras que indígenas ocupavam até a promulgação da Constituição, em 1988

Povos isolados: Autoriza entidades privadas a fazerem contato com povos isolados para realizarem ações consideradas de utilidade pública

Transgênicos: Permite o cultivo de transgênicos em terras indígenas

Revisão de demarcações: Possibilidade de revisão de demarcações feitas no passado

Indenização: Indenização para dono de terras demarcadas

Derrotas e Riscos para o Governo

DPU: Os senadores derrubaram o nome indicado por Lula para chefiar a Defensoria Pública da União (DPU)

Conta de luz: A Comissão de Infraestrutura do Senado aprovou projeto que suspende normas da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e abre margem para aumentar a conta de luz dos consumidores do Norte e Nordeste

Pauta anti-STF: Em aceno à oposição, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), pautou proposta que limita decisões individuais e pedidos de vista no Supremo. O Palácio do Planalto quer evitar atritos entre os Poderes e a conturbação do cenário político.