ARGENTINA

Com Milei, democracia virou tema-chave na reta final de disputa eleitoral argentina

A dinâmica é similar à que se viveu no Brasil, na campanha eleitoral de 2022, com o ex-presidente Jair Bolsonaro, de quem o candidato radical de direita é aliado

Javier Milei tem propostas que desagradam ao povo argentino, como permitir a venda de órgãos - Luis Robayo/AFP

Nas últimas semanas e, sobretudo, nos últimos dias, intensificaram-se as campanhas contra o candidato da direita radical argentina, Javier Milei, considerado por setores da política nacional e ONGs locais e internacionais uma ameaça à democracia no país.

Numa dinâmica similar à que se viveu no Brasil, na campanha eleitoral de 2022, Milei, como aconteceu com o ex-presidente Jair Bolsonaro, de quem é aliado, é acusado por adversários, setores da sociedade e organizações vinculadas à defesa dos direitos humanos de representar um risco para as instituições democráticas argentinas.

Na última quarta-feira, a candidata a vice-presidente do partido A Liberdade Avança, fundado e liderado por Milei, a advogada Victoria Villarruel, disse, em entrevista ao canal de TV do grupo La Nación, que o país só superará a crise na qual está mergulhado com uma “tirania”.

A companheira de chapa de Milei — filha de um militar e defensora de militares condenados por terem cometido violações dos direitos humanos durante a última ditadura (1976-1983) — lançou a polêmica frase um dia antes do encerramento de campanha do candidato, num evento gigantesco ontem na província de Córdoba, território tradicionalmente antiperonista.

O candidato da aliança entre peronistas e kirchneristas Sergio Massa fechou sua campanha com um encontro com jovens na Escola Carlos Pellegrini, em Buenos Aires, marcando uma clara diferença com seu adversário.
 

Negando desaparecidos
As dúvidas sobre as convicções democráticas de Milei pairaram sobre a Argentina durante toda a campanha eleitoral. Num dos primeiros debates presidenciais, o candidato da direita radical negou a existência de 30 mil desaparecidos na ditadura e afirmou que o país foi cenário de uma guerra, igualando o regime militar a seus opositores.

O presidente Alberto Fernández e o prefeito de Buenos Aires, Horacio Rodríguez Larreta, entre outros, disseram publicamente considerar Milei uma ameaça à democracia do país, e a campanha contra o candidato cresceu dentro e fora da Argentina, com o apoio de ONGs como Anistia Internacional e Greenpeace.

Foi nesse contexto que a companheira de chapa do candidato do partido A Liberdade Avança defendeu, sem titubear, a necessidade de instalar uma “tirania” para tirar a Argentina do buraco. Villarruel, que já se referiu às Mães e Avós da Praça de Maio como mães de terroristas (pelo fato de alguns desaparecidos terem pertencido, em alguns casos, a grupos guerrilheiros), estava encerrando uma entrevista na TV quando pronunciou a frase, provocando debates nas redes sociais.

A entrevista já estava no fim e, quando os jornalistas já quase se despediam, a candidata a vice-presidente disse estar surpresa pelo fato de o peronista Sergio Massa, rival de Milei no segundo turno, estava “incendiando tudo e pretenda assumir o poder no dia 10 de dezembro”.

— Então, que país você quer assumir? Um país devastado. E como você acha que poderá resolver isso se não for com uma tirania? — disse Villarruel.

A candidata a vice de Milei é conhecida por sua defesa de vítimas militares que morreram em atentados organizados por grupos guerrilheiros, antes e durante o regime militar. Segundo disse Villarruel em diversas oportunidades, até agora “o kirchnerismo contou apenas um lado da história, e nós vamos contar a história completa”.

No debate com o companheiro de chapa de Massa, o chefe de Gabinete do presidente, Agustín Rossi, a advogada, que criou uma fundação para defender as vítimas do terrorismo nos anos de chumbo, insistiu, como Milei, em afirmar que a Argentina foi cenário de uma guerra, e não de uma ditadura. Villarruel costuma dizer que as vítimas “do terrorismo” foram, até agora, ignoradas pelo Estado.

"Tirania das maiorias"
No comício de encerramento em Córdoba, ontem, Milei acusou o rival de justamente ter a intenção de estabelecer “a tirania das maiorias”.

— Queremos a tirania das maiorias, do populismo kirchnerista, ou as ideias da liberdade? — perguntou à multidão.

As polêmicas falas da candidata a vice de Milei desta semana deram ainda mais impulso ao movimento de organizações de defesa dos direitos humanos. Na última semana, personalidades da cultura organizaram uma marcha em Buenos Aires para denunciar os riscos que dizem que Milei representa para a democracia do país. Ontem, as Avós da Praça de Maio realizaram uma passeata para “defender a memória” no centro de Buenos Aires, diante da “defesa da ditadura por Milei e Villarruel”.

Uma campanha apoiada por ONGs locais e internacionais lançada há cerca de duas semanas tem como lema “Não joguemos fora a democracia que soubemos construir”. Além da Anistia Internacional e do Greenpeace, aderiram a ONG argentina Poder Cidadão, a Fundação Mudança Democrática, e o Centro de Estudos Legais e Sociais de Democracia em Rede, entre outros.

Durante a campanha eleitoral, dirigentes peronistas afirmaram que uma eventual vitória de Milei implicaria a dissolução do Estado argentino, e o próprio Fernández comparou o candidato da direita radical a Hitler — o que levou Milei a apresentar uma denúncia na Justiça contra o presidente.

Ameaças a críticos
Nas últimas semanas, as acusações contra o candidato do partido A Liberdade Avança e sua companheira de chapa aumentaram. Importantes dirigentes peronistas, entre eles a presidente da Câmara, Cecilia Moreau, denunciaram nas redes sociais que seguidores de Milei ameaçaram críticos do candidato de perseguição e até mesmo morte.

A acusação de Moreau aconteceu depois de líderes juvenis da União Cívica Radical (UCR) terem recebido ameaças através de mensagens enviadas a suas contas em redes sociais. Um dos ameaçados foi Agustín Rombolá, presidente da UCR juvenil de Buenos Aires. Ao jornal Página 12, ele disse que “não podemos continuar ampliando o limite do que é tolerável, não podemos continuar naturalizando os linchamentos e a violência, sobretudo diante do risco de que se imponha uma opção autoritária como a que representa A Liberdade Avança”.

Esta semana, o jornal de Buenos Aires Herald, que na ditadura publicava denúncias sobre o desaparecimento de pessoas, fez um editorial afirmando que Milei “representa uma ameaça para a convivência democrática na Argentina”.