Conflitos

Guiana busca ação de Lula em crise com Venezuela

Presidente recebeu ligação "urgente" de mandatário guianense, que teme perder mais da metade do seu país, sob ameaça de invasão

Presidente venezuelano, ao centro, diz que a História da região é "complexa", mas que as atuais fronteiras foram fraudadas 'pelo colonialismo britânico' - Wendys Olivo/AFP

A diplomacia do governo Luiz Inácio Lula da Silva começou a lidar com um grave problema no próprio quintal, enquanto tenta emergir como ator relevante nos conflitos do Oriente Médio e na guerra entre Rússia e Ucrânia. Há pouco mais de uma semana, o petista conversou, por videoconferência, com o presidente da Guiana, Irfaan Ali. Foi um contato classificado como “urgente” e marcado de última hora para conversar sobre uma crise militar. Lula recebeu um apelo para dissuadir o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, de cumprir a promessa de invadir e anexar pouco mais de 50% do território do país vizinho.

Em meio às dificuldades internas do país e num processo de relaxamento das sanções por parte dos EUA, a Assembleia Nacional da Venezuela aprovou um referendo, marcado para 3 de dezembro, no qual os venezuelanos responderão se a chamada “Guiana Essequibo”, rica em petróleo, deveria ser parte do Estado bolivariano.

No dia 9, a equipe de Celso Amorim, assessor especial da Presidência, viabilizou a conversa de Lula com o presidente da Guiana, após intermediação do Itamaraty. Diante do temor de que Maduro atue para violar a soberania do país vizinho, o governo brasileiro ainda não expressou de forma pública uma posição sobre a ameaça. Reservadamente, porém, o governo entende que o caso pode gerar um problema de insegurança “há muito” não verificado na região.

Fronteira com o Brasil
Tanto a Venezuela quanto a Guiana fazem fronteira com o Brasil e são banhadas pelo Oceano Atlântico. Na parte de Essequibo, há poços de petróleo em mar aberto explorados pela companhia americana Exxon Mobil, o que despertou a ira de Maduro pela “exploração ilegal das terras deixadas pelos libertadores”. Caso seja anexada, a faixa do território teria fronteira direta com o Brasil, além de se estender até o litoral.

No Palácio do Planalto, o assunto está na mesa para um debate mais aprofundado. A expectativa é de que Lula possa fazer um trabalho de gestão com Maduro, com quem tem boas relações, embora a posição venezuelana seja considerada difícil de contornar. Até mesmo parte da oposição é a favor da tomada da região, como a líder María Corina Machado, tornada inelegível pelo regime de Maduro, mas sua principal potencial adversária em eleições no ano que vem.

Após a reunião com Lula, o ministro das Relações Exteriores da Guiana, Robert Persaud, afirmou que o presidente Ali e o brasileiro discutiram “cooperação de Defesa e militar, o respeito à soberania e à integridade territorial, além de tratar do respeito às leis internacionais”.

Na próxima quinta-feira, haverá um encontro entre chanceleres e ministros da Defesa da América do Sul, ocasião em que o assunto pode entrar nas rodas de debate. Até o momento, porém, não há indicações de que o Brasil iniciará conversas sobre o tema, dizem fontes do Itamaraty.

A questão preocupa também o governo americano do presidente Joe Biden. Na sexta-feira da semana passada, a recém-chegada embaixadora dos Estados Unidos na Guiana, Nicole Theriot, reforçou que uma de suas missões no país era estimular o “compromisso democrático na região”. Ao seu lado, Ali assinalou que a relação bilateral tem sido uma das mais sólidas, inclusive na área de Defesa e contra o crime transnacional.

"Colonialismo britânico"
No Itamaraty, há o temor de que a crise possa, em breve, chegar à fronteira da Guiana. Comitês do PSUV, o partido de Maduro, intensificaram a campanha por toda a Venezuela. Pelas redes sociais e em rede nacional, o próprio presidente também já se pronunciou diversas vezes, inclusive elencando os motivos para invadir o país vizinho. Segundo Maduro, a história da região de Essequibo é “complexa”, mas as atuais fronteiras foram “fraudadas pelo colonialismo britânico”.

A Guiana é uma ex-colônia britânica que tem o inglês como língua oficial. O país quadruplicou sua economia nos últimos cinco anos. Puxada pela exploração de petróleo, deve expandir mais 38% este ano, informa o FMI.

Até o momento, não há sinais de que o Itamaraty ou o governo brasileiro estejam imersos na mediação, embora defenda-se o diálogo para evitar qualquer confronto na região. Além de enfrentar a crise militar em seu quintal, o Brasil se esforça para que as eleições presidenciais na Venezuela, marcadas para o ano que vem, sejam reconhecidas, embora o regime de Maduro continue a cercear os direitos da oposição.

Tribunal Internacional
Diante da ameaça contra a soberania do território, o governo da Guiana acionou o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), em Haia, vinculado às Nações Unidas, para barrar a realização do referendo. O país cita a arbitragem de Paris, em 1899, que delimitou as fronteiras atuais, como salvaguarda para manter a legitimidade internacional. Já a Venezuela cita o Acordo de Genebra, em 1966, para dar prosseguimento ao plano do referendo. Na ocasião, os dois países assinaram um documento em que se comprometiam a reabrir a discussão sobre o território.

As audiências no tribunal já começaram, inclusive com a participação da Venezuela. Mas Maduro deixou claro que o país não confere ao tribunal internacional qualquer legitimidade decisória sobre o assunto:

— Eu digo à Guiana, e os que tenham bons ouvidos ouçam bem no mundo inteiro: o referendo do dia 3 de dezembro ocorrerá, faça chuva, faça sol, ou sob raios e relâmpagos. O nosso povo decidirá, soberana e democraticamente, o seu futuro, o seu destino.