AMÉRICA DO SUL

Fazenda e analistas não acreditam que Argentina vá deixar Mercosul

A expectativa é que Javier Milei adote um tom mais moderado e pragmático nas relações econômicas também com o Brasil

Presidente eleito da Argentina, Javier Milei - Luís Robayo/AFP

No Ministério da Fazenda, a visão é que no curto prazo o presidente eleito da Argentina, Javier Milei, adotará um tom mais moderado e pragmático nas relações econômicas com o Brasil e não deve deixar o Mercosul.

Empresários que exportam para o país vizinho também não esperam uma ruptura, pois o Brasil e o Mercosul são muito importantes para a Argentina. A corrente comercial (exportações e importações) entre os dois países movimenta algo próximo de US$ 30 bilhões por ano, e o Brasil é o segundo maior parceiro da Argentina, atrás da China.

Na Fazenda, o entendimento é que Milei precisou amenizar o discurso já após o primeiro turno, a fim de conquistar o apoio da candidata Patricia Bullrich, ligada ao ex-presidente Maurício Macri. A equipe de Fernando Haddad ainda espera a indicação do nome do novo ministro da Economia argentino antes de tentar qualquer tipo de contato.

Foco no acordo com UE
Como Milei tem um discurso ultraliberal, a Fazenda avalia que o acordo entre Mercosul e União Europeia seja levado adiante, apesar das declarações dele durante a campanha, já que é um tratado de liberalização comercial. O acordo foi tema de uma conversa telefônica, no domingo, entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen.

"Não acho que a Argentina sairá do Mercosul. Uma hipótese seria os chineses pressionarem os argentinos pela saída (do Mercosul) para se beneficiarem disso. Mas aí fica inviabilizado o fechamento do acordo entre Mercosul e União Europeia, e o prejuízo é grande — diz José Augusto de Castro, presidente executivo da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB)".

Ainda assim, o assessor para assuntos internacionais do Palácio do Planalto, Celso Amorim, disse ao GLOBO que uma das grandes preocupações do Brasil, neste momento, é “salvar” o Mercosul:

"Temos que respeitar o resultado da eleição, por um lado, manter as relações como dois Estados e, se possível, salvar o Mercosul. A relação entre Brasil e Argentina é a base do Mercosul e tem reflexo em toda a América do Sul".

O que é visto como perdido com a eleição de Milei é o esforço para que a Argentina fizesse parte do banco dos Brics (bloco de países que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). O argentino não deve “se engajar” com a instituição, mesmo podendo receber dólares do órgão de fomento.

Nas relações bilaterais, as diferenças políticas não devem ser replicadas no comércio, que ocorre entre entes privados. No ano passado, o Brasil registrou saldo positivo de US$ 2,2 bilhões no comércio com a Argentina. Foram US$ 15,3 bilhões em exportações, contra US$ 13,1 bilhões em importações.

Bolsonaro e Milei: veja semelhanças e diferenças entre os dois líderes da extrema direita

Fernando Pimentel, presidente executivo da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit), também não espera ruptura:

"Governar é diferente de fazer campanha. Acho difícil ter um rompimento com o Mercosul, apesar de suas imperfeições. E é preciso finalizar o acordo com a União Europeia".

O setor têxtil tem na Argentina seu principal mercado exportador, com cerca de US$ 250 milhões em vendas anuais.

Haroldo Ferreira, presidente executivo da Associação Brasileira das Indústrias de Calçados (Abicalçados), admite que uma ruptura da Argentina com o Mercosul afetaria o setor: o calçado brasileiro, que hoje entra no país vizinho com tarifa zero, teria uma taxa de 35%. A Argentina é o principal destino do calçado brasileiro no exterior. Entre janeiro e outubro, a Argentina importou 12,9 milhões de pares, por US$ 202,9 milhões.

Dolarização: plano difícil
Outras propostas de Milei, como dolarizar a economia e acabar com o Banco Central, são vistas pelo governo brasileiro apenas como uma forma de desregulamentar a economia. Hoje, argentinos mantêm dólares literalmente “debaixo do colchão” e Milei pode dar estímulos para que eles passem a circular. Com o BC, pode acontecer o mesmo, com a diminuição de regras definidas pelo banco, mas ninguém na Fazenda aposta na sua extinção completa.

Para Sergio Vale, economista-chefe da MB Associados, dificilmente a dolarização sairá do papel, tanto pela falta de dólares quanto pela dificuldade de Milei obter apoio político:

"O caminho para pensar em uma dolarização que funcionasse teria de passar por um planejamento mais longo e baseado em um ajuste fiscal significativo. É difícil fazer uma dolarização se os Estados não estiverem imbuídos desse ajuste fiscal. Fazer reforma na canetada não vai adiantar".

Para o economista, a Argentina deveria adotar o tripé que funcionou no Brasil: “câmbio flexível, sistema de metas de inflação e um regime fiscal novo e forte na economia, o que eles nunca tiveram.” Vale diz ainda que a proposta de fechar o BC não deve passar no Congresso.