Pressões por formação de Gabinete de Milei na Argentina podem por em risco plano de dolarização
Presidente eleito sacrificou nomes como o do economista Emilio Ocampo, autor de um dos planos de adoção do dólar como moeda nacional
A formação do futuro Gabinete da Argentina tornou-se uma arquitetura complicada para o presidente eleito do país, Javier Milei, processo que, na visão de analistas ouvidos pelo Globo, poderia colocar em risco o plano de dolarização da economia, uma das principais bandeiras de sua campanha.
A saída do economista Emilio Ocampo, autor do projeto, da equipe de transição instalou dúvidas sobre o futuro da proposta de adotar o dólar como moeda nacional. Ocampo fora confirmado pelo próprio Milei como futuro presidente do Banco Central — e encarregado de fechar a instituição —, mas acabou sendo descartado pela incorporação do economista Luis Caputo, provável futuro ministro da Economia e crítico da medida e de outras ideais de Ocampo.
Caputo é ligado ao ex-presidente Mauricio Macri (2015-2019), aliado central do presidente eleito. Macri não foi apenas uma voz potente a favor do sucessor do peronista Alberto Fernández na campanha: foi, também, o encarregado de arrecadar cerca de US$ 4 milhões entre empresários amigos para financiar a fiscalização da eleição. A medida foi muito importante para que Milei pudesse enfrentar a máquina peronista, sobretudo na província de Buenos Aires.
— A saída de Ocampo e a entrada de Caputo podem significar o abandono da ideia de dolarizar, porque, de fato, a Argentina não tem os dólares necessários para fazer isso — afirma Ignácio Labaqui, consultor e professor da Universidade Católica Argentina, (UCA), lembrando que o Equador, quando dolarizou sua economia, tinha reservas positivas no Banco Central.
Já a Argentina, frisou, “tem reservas negativas estimadas em US$ 12 bilhões”.
Em paralelo, a ex-candidata presidencial da aliança de centro-direita Juntos pela Mudança Patricia Bullrich — mergulhada numa profunda crise interna — chegou a um acordo com Milei para assumir o Ministério da Segurança, mesmo cargo que teve no governo de Macri. Ao lado da pasta da Economia, é um dos pilares do pequeno Gabinete do presidente eleito, que terá apenas oito ministérios, num país cujos principais desafios são a gravíssima crise econômica e o expressivo aumento da insegurança.
As duas pastas estarão em mãos de aliados de Milei, e não de seu partido A Liberdade Avança.
— Milei está mostrando um lado pragmático que não conhecíamos — enfatiza Labaqui. — Os primeiros seis meses de governo serão cruciais.
A ruptura com Ocampo foi uma surpresa até mesmo para funcionários do Banco Central que estavam trabalhando com o economista há vários meses. Na sexta-feira, Milei disse que sua decisão de fechar o BC não é negociável, mas não falou sobre dolarização.
Em comunicado oficial, o Escritório do Presidente Eleito, que entrou em campo após a vitória de domingo passado, informou que “diante dos rumores que estão sendo divulgados, queremos esclarecer que o fechamento do Banco Central da República Argentina não é negociável”. O texto diz, ainda, que somente o escritório está autorizado a dar informações sobre o novo governo.
Segundo revelou o jornal La Nación, Caputo vinha colaborado com Milei há mais de um ano através de sua empresa de consultoria Anker América Latina, e construiu uma relação de confiança com quem será o futuro chefe de Gabinete, Nicolás Posse. Existe, ainda, uma relação próxima entre Luis Caputo e Santiago Caputo, estrategista estrela da campanha de Milei. Ambos são parentes distantes, e Santiago promoveu a relação entre Milei e o futuro ministro da Economia. Tudo isso aconteceu enquanto Ocampo se sentia, baseado em declarações públicas de Milei, o pai da dolarização — que talvez nunca saia do papel.
Outras figuras importantes na campanha, entre elas Carolina Píparo, deputada eleita e ex-candidata ao governo da província de Buenos Aires, perderam espaços no futuro governo por resistência dos novos aliados do presidente eleito.
Mais moderado, pragmático e, para alguns analistas, realista, Milei avança com a formação de seu Gabinete tendo em mente dois elementos centrais: a necessidade de reforçar a aliança com Macri e Bullrich, mas também, de incluir setores do peronismo nos acordos, para garantir a governabilidade. O partido do presidente será a terceira minoria no Parlamento, algo inédito em 40 anos de democracia, e depende de uma articulação política bem sucedida para aprovar o pacote de reformas que pretendia enviar pouco após a posse, em 10 de dezembro.
Tampouco está claro o papel que terá a futura vice-presidente Victoria Villarruel, especialista em segurança e defesa, com a incorporação, em grande estilo, de Bullrich ao governo.
As últimas decisões de Milei geraram todo tipo de rumores. Fala-se em crise dentro de A Liberdade Avança, guerra entre seus membros e o partido Proposta Republicana (Pro) — liderado por Macri e no qual Bullrich é figura de proa —, e, sobretudo, no risco de que o presidente decepcione seus eleitores mais fieis pela aproximação do que ele passou a campanha inteira atacando: o que ele chama, ou chamava, de casta política.
Até agora, Macri ganhou espaços, mas não todos os que queria. O Ministério da Justiça era uma de suas demandas, segundo fontes próximas ao ex-presidente, mas finalmente foi escolhido o advogado Mariano Cuneo Libarona, que tem boa relação com Macri, mas não era o nome que o líder do Pro queria. Macri enfrenta algumas denúncias judiciais e está preocupado com o avanço de alguns processos contra ele.
Milei e Macri parecem dois equilibristas, tentando obter a maior fatia de poder possível, sem colocar em risco uma aliança que, para ambos, é chave.
— Milei venceu a Presidência, mas não controla o Congresso, não tem governadores e muito menos controla o território bonaerense [província de Buenos Aires]. É o governo politicamente mais fraco desde 1983, mas que venceu graças a uma sociedade que optou pela fragmentação política. Agora, todos têm algo a dizer — afirma o analista Carlos Fara.
As próximas semanas e meses serão determinantes. Se Milei superar os primeiros seis meses de governo sem grandes traumas, as chances de dar certo ficarão mais claras. Caso contrário, muitos temem que o primeiro governo de um outsider da História da Argentina se torne inviável.