ARGENTINA

Descabelado e bom de voto: imagem de Milei foi pensada para distanciá-lo do político tradicional

Ex-maquiadora e cabeleireira contou em entrevistas que presidente eleito deixou em suas mãos todos os detalhes de seu visual

Presidente eleito da Argentina, Javier Milei - Luís Robayo/AFP

Quando o economista Javier Milei se tornou uma figura midiática em seu país, sua estética e seu visual chamavam tanto a atenção dos telespectadores quanto seu discurso politicamente incorreto e sua personalidade explosiva.

Nas palavras do jornalista Juan Luis González, autor da biografia não autorizada do presidente eleito da Argentina intitulada “El loco” (O louco, em tradução livre), “Milei hipnotiza as pessoas, você pode estar de acordo ou não, mas é impossível ignorá-lo”.

De fato, é impossível não prestar atenção em Milei. Suas primeiras participações na TV elevaram a audiência dos programas por onde passou e impactaram apresentadores e outros convidados que, muitas vezes, discutiam com ele.

O cabelo cuidadosamente desarrumado, costeletas inspiradas em personagens da Marvel, um caderninho ou livro sempre a tiracolo, ternos que já saíram de moda e um casaco de couro preto se tornaram marcas registradas. Por trás de cada detalhe — espontâneo ou não —, há intenção política e desejo de comunicar, essencialmente, a ideia de que Milei não é um político tradicional.

 

Tendência antipolítica
González entrevistou colegas de escola do presidente eleito, que garantiram ao escritor que Milei sempre teve um cabelo bagunçado.

Mas esse traço original foi melhorado desde que ele decidiu iniciar uma carreira política, como confirmou, em várias entrevistas, a mulher que esteve até agora encarregada de sua maquiagem e corte de cabelo: a influencer e deputada eleita pela província de Buenos Aires Lilia Lemoine — uma das primeiras integrantes do partido A Liberdade Avança, fundado em 2021 por Milei. Naquele ano, o sucessor do peronista Alberto Fernández foi eleito deputado por Buenos Aires, com 17% dos votos. Foi sua primeira vitória política.

Nas últimas semanas, Lemoine, que tinha se tornado uma figura midiática dentro do partido da direita radical argentina, recebeu a orientação, segundo fontes da equipe de colaboradores de Milei, de evitar o contato com a imprensa. A deputada eleita tem o costume de fazer declarações polêmicas, que, segundo assessores do presidente eleito, causam dano à legenda.

Mas a imagem de Milei nos últimos anos é, sem dúvida, mérito dessa mulher de 43 anos, famosa por ter sido cosplayer (atividade que consiste em caracterizar-se e comportar-se como um personagem), conhecedora do mundo das redes sociais e líder do que ela chama de batalha cultural contra o feminismo.

Sem ser estrategista política, Lemoine foi importante na primeira campanha eleitoral de Milei. O que a deputada eleita fez, afirma o estrategista equatoriano Jaime Durán Barba, artífice da vitória do ex-presidente Mauricio Macri em 2015, foi, talvez sem saber, interpretar o que um setor da sociedade argentina buscava.

— O sucesso de Milei é representar o diferente, a antipolítica. As pessoas, em sua grande maioria, estão escolhendo presidentes na América Latina que não se parecem com políticos tradicionais — explica Durán Barba, com quem trabalhou Santiago Caputo, um dos principais estrategistas de Milei.

O cabelo, o casaco de couro, a caderneta ou um livro sempre na mão (imagem de quem depende mais de si mesmo do que de informações de assessores) e as frases que um político tradicional jamais diria são, afirma o estrategista equatoriano, o segredo do sucesso do presidente eleito.

— Milei grita, fala palavrões e chama a atenção porque é diferente. Ele foi muito além de Macri, que já se mostrou como diferente da política tradicional, começando porque é um péssimo orador — acrescenta Durán Barba que é professor na George Washington University, nos Estados Unidos.

Em discussões acadêmicas nos EUA, o estrategista comenta que existe um consenso sobre uma mudança profunda nas preferências dos eleitores latino-americanos — mas não apenas — após a pandemia de Covid-19.

Muitas pessoas deixaram de prestar atenção em discursos de políticos, estão menos engajadas com a imprensa profissional, e, com esse pano de fundo, líderes como Milei conectam-se com o lado emocional dos eleitores por meio de suas declarações controversas — para muitos outros que não se sentem identificados — e o visual atípico para um político.

Sem vaidade e roqueiro
Lemoine gosta de contar que foi sua a ideia de deixar crescer as costeletas, assim como o corte de cabelo assimétrico. Quando é perguntado sobre o cabelo, Milei, chamado de “leão” por seus seguidores, costuma dizer que não se penteia, e que tudo nele é natural. Mas sua ex-maquiadora e cabeleireira contou em entrevistas que o presidente eleito deixou em suas mãos, antes da campanha de 2021, todos os detalhes de seu visual.

Ex-colegas de trabalho de Milei em grandes grupos econômicos e empresas de consultoria econômica lembram que o presidente eleito nunca foi muito vaidoso, e costumava usar ternos muito simples para ir ao escritório.

O casaco de couro sempre foi uma de suas marcas registradas, que vem da época em que Milei era cantor de uma banda de rock inspirada nos Rolling Stones. O rock é outro elemento importante de uma estética que busca, permanentemente, conectar-se com o lado emocional dos eleitores.

— Milei capta o olhar das pessoas, mas sobretudo dos jovens. A mensagem subliminar é sempre a rebeldia — afirma González.

Rebeldia
O jornalista lembra que as bandas de rock escolhidas pelo presidente eleito para animar seus eventos políticos têm músicas que combinam com essa rebeldia, entre elas La Renga.

O grupo nasceu no final da década de 1980, no bairro de Matadores, em Buenos Aires, e começou em pequenos clubes locais, até se tornar uma das bandas icônicas do rock argentino contemporâneo.

Uma das músicas do grupo que virou quase hino nos comícios de Milei é “Panic show”, do disco “La esquina del infinito”. Os integrantes da banda se descolaram dele, mas não conseguiram que deixasse de usar suas músicas em atos políticos.

— A Argentina é um país roqueiro e a utilização do rock tem, também, uma intencionalidade política — acrescenta o biógrafo não autorizado de Milei, bloqueado pelo presidente eleito nas redes sociais.

Destoar da política tradicional tornou Milei um fenômeno político nacional, com alta chance de projeção internacional. Num mundo no qual, frisa Durán Barba, de 75 anos, os partidos tradicionais entraram numa crise da qual parece difícil que consigam sair, o que funciona é o que, conclui o estrategista, “meu neto entende perfeitamente, e minha mãe acharia um absurdo”.