Na contramão da Câmara, TSE aperta punição à fraude de cotas de gênero e condena 82% dos casos
Congresso analisa PEC da Anistia em momento em que a Justiça Eleitoral aumenta o rigor em julgamentos que tratam de candidaturas 'fictícias' de mulheres
Enquanto a Câmara discute anistiar as multas aplicadas aos partidos que descumpriram a cota de gênero nas eleições, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) vem acelerando punições às fraudes.
Levantamento do Globo com base nos 51 julgamentos envolvendo candidaturas laranjas no pleito de 2020 mostra 42 decisões que resultaram na cassação de chapas inteiras de vereadores, ou seja, 82% dos casos, atingindo 101 postulantes. O patamar antecipa quais serão os próximos passos para 2024, quando o tribunal vai manter o rigor para coibir a prática.
Na tentativa de ampliar a representatividade feminina, a lei define um mínimo de 30% de mulheres nas nominatas. Para driblar a exigência, as legendas se valem de candidatas que não concorrem de fato.
Nas duas últimas semanas, o TSE determinou quatro condenações por fraudes à cota de gênero, uma delas envolvendo as eleições para a Câmara de Vereadores de Belém. Relatora do caso, a ministra Cármen Lúcia apontou que duas candidatas do PSD que tiveram votação zerada ou ínfima não gastaram com publicidade de campanha nem fizeram propaganda nas redes sociais. A decisão atingiu uma vereadora da sigla, que perdeu o mandato. O PSD afirma que não houve irregularidade e que as candidatas apontadas como laranjas, na verdade, desistiram de concorrer na campanha.
— Não se pode fazer de conta que se está cumprindo, porque lei não é aviso, sugestão nem proposta. É uma norma para que tenhamos um estado democrático. Nós, mulheres, queremos que isso se cumpra com a nossa participação efetiva, correta e republicana — afirmou a ministra Cármen Lúcia no julgamento.
Na última quinta-feira, o tribunal tomou decisão semelhante em relação a Muqui (ES). Dois vereadores do PDT perderam os mandatos após a Corte considerar que uma candidata da chapa, com votação zerada, não realizou atos eleitorais e tampouco teve uma movimentação financeira condizente com a disputa. O partido alega que ela realizou uma cirurgia bariátrica na campanha, o que forçou a desistência.
A “virada” na forma de avaliação do TSE veio há um ano e meio. Em maio de 2022, ao julgar um processo referente a Jacobina (BA), os ministros definiram os critérios para balizar as decisões: votação zerada ou pífia das candidatas; prestação de contas com movimentação financeira irrelevante; e ausência de atos efetivos de campanha. Três anos antes, o tribunal tinha dado outro passo: ao julgar o caso de candidaturas fictícias nas eleições de 2016 em Valença (PI), estabeleceu que a comprovação da fraude à cota derruba toda a coligação ou partido.
Na análise do caso de Jacobina, seguindo o voto do ministro Alexandre de Moraes, a Corte determinou um novo cálculo da votação para vereador, declarou nulos os votos obtidos pelo PP, cassou diplomas dos envolvidos e estipulou a inelegibilidade, por oito anos, das quatro candidatas da legenda ao cargo. O PP sustenta que não há “evidências” que demonstrem a ilegalidade.
— Precisamos ser duros em relação a essas candidaturas fictícias de mulheres, se quisermos implementar efetivamente a política de gênero — ressaltou Moraes.
Ao assumir a presidência da Corte, em agosto do ano passado, ele seguiu no mesmo tom e afirmou que partidos e agremiações que optassem pela burla teriam prejuízo “muito grande”.
Efeito reverso
Como consequência das decisões do TSE cassando as chapas inteiras, mulheres também vêm perdendo o cargo na esteira das condenações. Especialistas alertam para o risco de um efeito reverso da ação afirmativa, afastando as mulheres da política em vez de aproximá-las.
— Cassar o direito fundamental de uma mulher eleita em razão de fraude cometida por terceiro não é cumprir a lei, é violar a Constituição. Mulheres eleitas não podem mais ser tratadas como efeito colateral, ao argumento de que essa seria a única forma de dar consequência à ação afirmativa que deveria protegê-las — aponta a advogada Marilda Silveira, doutora em Direito Público pela UFMG.
Foi o que aconteceu com a pedagoga Simone Lima em São Miguel dos Campos (AL). Após perder quatro vezes a eleição para vereadora, enfim foi eleita em 2020, pelo PP, com 555 votos. A constatação de uma candidatura laranja em sua chapa, porém, fez com que ela perdesse o mandato após mais de dois anos de atividade legislativa. O partido nega fraude e diz que houve uma desistência legítima da candidatura. A Câmara hoje tem apenas duas vereadoras entre 15 integrantes.
— Eu me sinto injustiçada. Fui eleita e perdi o meu mandato porque colocaram uma mulher para compor a chapa. Não tenho nada a ver com o que fizeram de errado, e mesmo assim fui punida — disse ela ao Globo.
Outra mulher que perdeu o mandato, que preferiu não ser identificada, diz que há falhas na “fiscalização prévia”. Ela, que decidiu não se candidatar mais, afirmou ser vítima de uma burla feita pelo partido.
O debate sobre ampliar a responsabilização já chegou ao TSE. “Temos percebido certo automatismo na imposição irrestrita de inelegibilidade apenas às mulheres, sem a inclusão dos dirigentes partidários”, disse em abril a então ministra da Corte Maria Cláudia Bucchianeri, ao votar em um processo relativo à cidade de Andradina (SP).
— A solução é investigar a fundo e punir quem contribuiu diretamente, tal como os dirigentes partidários — afirma Bianca Maria Gonçalves, pesquisadora do LiderA.
Debate no Congresso
Em paralelo, o Congresso Nacional analisa uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que livra os partidos de multas aplicadas pelo descumprimento à cota de gênero. A PEC da Anistia também acaba com a obrigatoriedade de preenchimento de 30% das chapas com candidaturas femininas.
— As cotas de gênero são uma conquista e toda fraude deve ser rigorosamente apurada, mas isso precisa ser feito com a devida proporcionalidade. Essa fórmula de “cassa todo mundo” provoca justamente reações como a tentativa de anistia geral do Poder Legislativo — analisa a advogada Amanda Guimarães, integrante da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político.