Por que o Botafogo se engasgou com o grito de campeão brasileiro
Cinco técnicos, um sonho e nenhuma taça: o enredo alvinegro em um campeonato que parecia ganho
O Brasileirão ainda definirá, ao menos matematicamente, seu campeão na próxima quarta. O Palmeiras tem as duas mãos na taça, mas em movimento raro, não será o protagonista do campeonato.
O empate diante do Cruzeiro tirou de vez um sonho alvinegro que foi escapando pelos dedos nas últimas dez rodadas, misturando doses cavalares, e talvez iguais, de crueldade, incompetência e um enorme surrealismo.
Ninguém tinha perdido um Brasileiro após abrir 13 pontos de vantagem. Nenhum time, ao mesmo tempo, tinha sido campeão trocando tanto de treinador. Prevaleceu o pior dos ineditismos para o Botafogo. E não foi sem razão.
Castro e o dia do vou-me
Há muitos dias decisivos para a derrocada do Botafogo, mas o 30 de junho, já distante, foi um marco. Foi quando, depois de um processo conturbado, com erros de condução por parte do treinador, Luís Castro comunicou que acertaria com o Al-Nassr e deixaria a equipe após 1 ano e dois meses. O time era líder com sete pontos de vantagem, começava a criar cara de favorito ao título, em campanha com 10 vitórias e só duas derrotas.
Praticamente um "manager" do futebol alvinegro, Castro centralizava decisões e cumpria papéis para além do treinador. Após altos e baixos, finalmente parecia ter as condições ideais para, antes da hora prevista, levar o Botafogo a voos maiores.
Mas dentro da SAF, rusgas já aconteciam antes mesmo do assédio de Cristiano Ronaldo e dos árabes: o descontentamento com as manifestações da torcida nas fases ruins era público, mas o treinador também tinha seus incômodos internos. No fim de 2022 o treinador pediu, em coletiva, seis reforços para o ano seguinte. Foi repreendido por mensagem por John Textor, dono do clube. A atitude não chegou a azedar a relação entre os dois, mas esfriou. Castro se incomodava com notícias que chegavam a seus ouvidos sobre avaliações do departamento financeiro e da diretoria da SAF, aqui no Brasil, de que era um técnico caro.
Tudo isso deu algum peso a mais para o caminhão de dinheiro árabe oferecido, junto com o prestígio de treinar grandes jogadores em Riad. A pessoas próximas, no entanto, Castro até hoje repete que consideraria uma permanência se o clube tivesse proposto uma renovação do contrato - que ia até o fim deste ano - com um aumento considerável, mas sem atingir nem de perto o que ganha atualmente. Se de fato se convenceria, é impossível saber. Mas o certo é que Textor escolheu jogar a decisão para o treinador, prometendo discutir tudo isso depois do campeonato. Sem proposta na mesa, Castro tomou sua decisão levando consigo a narrativa de que nada de concreto foi feito para que ele ficasse.
Lage e os erros no começo, meio e fim
A escolha de Bruno Lage, técnico de grife, campeão português pelo Benfica, com passagem pela Premier League, para substituir Castro, foi 100% tomada por Textor. Festejada na época por clube, torcida e imprensa, parecia a ideal para que o Botafogo não saísse dos trilhos. A presença de Cláudio Caçapa como interino entre os dois portugueses foi uma sacada motivacional de mestre. Mas as três vitórias em três jogos conquistadas por ele ainda na esteira do legado do ex-treinador no Brasileirão, aumentaram a liderança e a impressão de que o Botafogo tinha uma fórmula perene, e única, do sucesso.
Além de 11 pontos de vantagem, Lage herdou a ansiedade de um ambiente que, ao mesmo tempo em que já conseguia enxergar a possibilidade de ser campeão e se desesperava com a chance de não conseguir e encerrar o jejum de 28 anos sem um título nacional. A oportunidade era incrível e tinha cara de única. O novo técnico português teve que lidar com a pressão de seguir um padrão de pontuação raro, não desagradar bases sólidas de uma equipe de sucesso, além de resolver e vislumbrar problemas naturais que surgiriam em um campeonato longo. Em meio a tudo isso, sucumbiu.
Deu uma entrevista desastrosa após a derrota contra o Flamengo, a primeira em casa após 11 jogos. Se mostrava abalado emocionalmente e não foi político ao barrar Tiquinho Soares, craque da equipe, em jogo contra o Goiás.
O terrível clima criado, muito por suas atitudes, não pode eximir de culpa uma falta de comando do departamento de futebol. Faltou acompanhamento e aconselhamento interno e isso se dá pela lógica do comando alvinegro. Homem de confiança de Textor, substituindo um antigo treinador que fazia inúmeras funções com elenco, diretoria e outros departamentos, Lage ficou à deriva.
Quando os jogadores se rebelaram e sugeriram sua saída, ninguém por perto foi capaz de sacar e relatar a Textor que algumas de suas "loucuras" poderiam fazer sentido lá na frente: Di Plácido era inseguro na lateral direita, e diante da falta de opções Tchê Tchê poderia ser um nome. Gabriel Pires precisava de mais espaço. Diego Costa era boa alternativa em momentos de queda de Tiquinho.
Por fim, Lage deixou uma impressão agridoce, e com erros de vários lados. Talvez não fosse o melhor nome para vir, mas já que estava, era melhor ter ficado. Ainda mais diante da alternativa que se apresentava.
Faltou comando?
É nesse imbróglio, entre os arroubos de Lage e o descontentamento do elenco com o trabalho, que os próprios jogadores começam a sentir uma certa falta de comando no futebol do alvinegro. E, simultaneamente, aproveitam do vazio de poder e sucumbem justamente pela falta de estrutura que ela traz.
A bem verdade, os homens fortes do Botafogo tiveram seus méritos desde a criação da SAF: o time virou um concorrente ao título pelos acertos do departamento de futebol em 2022 e no início de 2023, principalmente nas figuras do diretor de futebol, André Mazzuco, e do chefe de scout, Alessandro Brito. Já Thairo Arruda, CEO da SAF, é quem lidera áreas que conquistaram grandes gols alvinegros fora de campo: pagamento de dívidas e negociação do RCE, bons acordos comerciais de patrocínio e material esportivo, avanços organizacionais do clube e no estádio.
Nenhum deles, porém, foi capaz de ter um diálogo franco e aberto com o vestiário. E as decisões em relação ao futebol ficavam centradas em Textor, que acompanhava à distância e com outras preocupações em sua holding de clubes. É nesse cenário, na falta de um chefe direto, alguém a conversar, que os jogadores resolvem pedir, intermediados até por pessoas externas à direção, para que Lucio Flavio e Carli passem a comandar a equipe. E é por causa desse cenário que a ideia - talvez a mais prejudicial para a perda do título - seja aceita sem muita contestação.
Passageiros da agonia
Da mesma maneira que as vitórias seguidas de Caçapa após Castro aumentaram a pressão sobre Lage, a estreia de Lucio Flavio com duas vitórias contra Fluminense e América-MG maquiaram o óbvio: sem experiência para o cargo, com uma comissão técnica improvisada e nenhuma liberdade para mudanças e nem autoridade para fazê-las, a equipe esmoreceria com Lucio Flavio.
Jogo a jogo, o time ruía na técnica, tática e no emocional. Duas viradas para Palmeiras e Grêmio minaram por completo a confiança de um elenco em frangalhos. Alçado ao posto com a missão de fazer o "feijão com arroz", Lucio Flavio era incapaz de ler o que as partidas decisivas pediam, e ao não rodar o elenco, o cansava ainda mais para a reta final. Ironicamente, errava por estar fazendo justamente o que foi pedido.
Requintes de crueldade
Quando a permanência de Lucio Flavio no comando do time já estava escancarada como um dos grandes erros da temporada, parte do elenco ainda tentou intervir. Com apoio de dirigentes do clube social, líderes do elenco tentaram costurar a chegada de Cuca, sem sucesso. Parou em Textor, que já admitia internamente o equívoco de ter sucumbido ao desejo dos jogadores uma vez.
Textor também decidiu demitir Lucio Flavio, e não mantê-lo na comissão, como era o plano inicial, porque não gostou da postura defensiva do time contra o Bragantino, o que resultou em gol nos acréscimos. Mal sabia que era só o primeiro.
Com Tiago Nunes como técnico para os cinco jogos finais e pelo futuro do alvinegro em 2024, o Botafogo melhorou defensivamente, pareceu mais organizado. Mas gols nos últimos minutos contra Santos e Coritiba deram impressão de que o título já era caso perdido antes mesmo da matemática confirmar. Não por culpa do novo técnico, mas por todo esse processo que passou por cinco técnicos diferentes à beira do campo, e que transformou um elenco que até certo ponto era alegre, vitorioso e cheio de vigor, em um grupo sorumbático, de quem a torcida espera sempre o pior e absolutamente desmilinguido. Psicologicamente desmoronado, o time se despediu de um título que parecia certo e caiu em noite melancólica no "tapetinho" de outros tempos. Já era.
E agora?
A missão para 2024 não é fácil. Machucada, a torcida não reembarcará facilmente no projeto de Textor, e tem a impressão que a ferida do Brasileirão de 2023 vai demorar a cicatrizar. Uma vaga na fase de grupos não amenizaria a sensação de fracasso, mas daria mais tempo para a cura de uma ressacada que deverá ser feita por um grupo muito parecido de jogadores.
A SAF do Botafogo vai adotar o discurso contra a terra arrasada, dizendo que, apesar dos traumas, o ano foi mais um passo na reconstrução de um time que quer voltar a ser campeão, e que o objetivo anterior, a vaga na Libertadores, foi alcançado. Não é de todo errado, mas resta saber se logo demonstrará que aprendeu de fato com os erros. A começar pelo de não trocar tantos treinadores assim. Só o tempo cura. E só o tempo vai dizer.