CINEMA

"Folhas de outono", de Aki Kaurismaki, acende esperança a mortos-vivos contemporâneos

Prêmio do Júri no Festival de Cannes, longa carrega fino humor involuntário e momentos de afeto têm como ponto alto química desajeitada atores excepcionais

'Folhas de outono', do finlandês Aki Kaurismaki - Divulgação

Dois perdidos em noites frias. Assim parecem Ansa e Holappa. Ela, recém-demitida de um supermercado, ele, tentando conciliar trabalho e alcoolismo. O acaso os aproxima em bizarro karaokê. Troca de olhares. Quem sabe a arte do encontro reserve boas surpresas? De forma desajeitada, rolam alguns contatos e até mesmo um cineminha.

Na tela, “Os mortos não morrem”, de Jim Jarmush. Ironia: Ansa e Holappa parecem vivos que não vivem. Ou não viviam. Que o espectador não se assuste com a expectativa de fábula soturna sobre tema recorrente de encontros e desencontros de expectativas afetivas. Afinal, na direção está o finlandês Aki Kaurismaki, fiel ao tema do proletariado em seu país e a requintado minimalismo, que prescinde de blá-blá-blá como forma de expressão.

A câmera privilegia closes de rostos em espaços fechados, com eventuais toques de vermelho, e se abre sobre áridas áreas de construção civil. Diálogos fluem com parcimônia, compensados por trilha sonora diversificada, que entrelaça Tchaikovsky, Gardel, músicas locais. Em bares ou fachadas, variada exposição de cartazes de filmes dos anos 60, mais coerentes com o casal em foco. Em pleno século XXI, o diretor de “O homem sem passado” dispensa acessórios obrigatórios de culto à individualidade. Fora um vetusto celular da moça, o possível casal poderia viver em décadas passadas, como personagens de Godard, Bresson ou mesmo do já citado Jarmush.

 

Para aficionados de Instagram e TikTok, as artimanhas do acaso e seu tempo mais lento ligando/desligando Ansa e Holappa podem remeter a um passado remoto, não fosse o bombardeio de noticiário sobre a guerra Rússia-Ucrânia — pelo rádio ligado na tomada, obviamente. Prêmio do Júri no Festival de Cannes, “Folhas de outono” constitui excelente surpresa em ano de safra particularmente fraca. A presença de finíssimo humor involuntário e momentos de afeto têm como ponto alto a química desajeitada de dois atores excepcionais: Alma Pöysti e Jussi Vatanen. Sim, Kaurismaki concede esperança a mortos-vivos contemporâneos.