Divisões no Golfo Pérsico dificultam ações para conter ataques a navios no Mar Vermelho
Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos têm planos diferentes para enfrentar a milícia no Iêmen, enquanto os EUA ainda mantêm a carta militar na manga
Os esforços dos EUA para conter os rebeldes houthis no Iêmen, no momento em que eles realizam ataques contra navios em uma das mais importantes rotas marítimas do planeta estão enfrentando problemas por conta de atritos entre os aliados árabes de Washington, segundo fontes com conhecimento dessas discussões.
Dois dos mais cruciais atores envolvidos na longa guerra civil iemenita, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, apoiam facções rivais contra os houthis, e têm ideias diferentes sobre como lidar com elas. As posições divergentes estão complicando as tentativas dos EUA para criar uma resposta coesa ao grupo, que é apoiado pelo Irã, disseram essas fontes.
As milícias atingiram uma série de navios-tanque e cargueiros em apoio ao Hamas em sua guerra contra Israel. Eles aceleraram o ritmo dos ataques na semana passada, abalando mercados de navegação e ajudando a elevar os preços do petróleo. No fim de semana, navios dos EUA e do Reino Unido derrubaram 15 drones lançados de áreas controladas pelos houthis no Iêmen.
Washington já considera lançar ações militares contra os houthis, talvez com ataques contra alvos do grupo, mas a opção no governo americano ainda é a diplomacia. O governo também trabalha com aliados árabes e ocidentais para incrementar uma força de proteção marítima para proteger navios no Mar Vermelho, por onde passam 12% do comércio global.
A Casa Branca está se comunicando com os houthis através de Omã e outros intermediários, pedindo que parem com os ataques, afirmou um integrante do governo dos EUA. Um porta-voz da milícia confirmou os contatos, mas disse que os ataques continuarão até que a guerra em Gaza termine.
Os Emirados Árabes querem uma ação militar, e querem que os EUA reclassifiquem os houthis como “terroristas”, disse um funcionário do governo do Iêmen reconhecido por Abu Dhabi.
— Os emiradenses acreditam que os houthis precisam ser controlados e enfraquecidos — disse Eleonora Ardemagni, especialista no Iêmen e pesquisadora no Instituto Italiano para Estudos de Política Internacional.
Os sauditas, por outro lado, apoiam uma abordagem comedida, com medo de que qualquer tipo de beligerância possa provocar os houthis para que sejam mais agressivos, de acordo com um integrante da equipe de negociadores do país que dialogam com a milícia. Isso pode ameaçar uma frágil trégua na guerra civil, e minar as tentativas de Riad de obter um acordo permanente de cessar-fogo, afirmou a fonte.
Os houthis têm se mostrado capazes de paralisar ou danificar infraestruturas cruciais na Arábia Saudita e Emirados. O ataque mais devastador ocorreu em 2019, quando eles conseguiram paralisar temporariamente metade da produção de petróleo saudita após um ataque a uma unidade de processamento. Desde a trégua, no começo de 2022, eles evitam disparar drones e mísseis contra vizinhos regionais.
Os sauditas acreditam que seu engajamento diplomático recente com o Irã possa ajudar a parar os houthis e garantir que o conflito Israel x Hamas não evolua para uma guerra regional, algo que eles, os EUA e os mercados globais querem evitar.
O chanceler saudita, príncipe Faisal bin Farhan, se reuniu com o homólogo iraniano, Hossein Amirabdollahian, na semana passada para discutir a necessidade de um cessar-fogo em Gaza. O vice-chanceler do reino árabe também esteve em Pequim para reforçar o compromisso do país com a reaproximação, mediada pela China, com o Irã, firmada em março.
Representantes sauditas e dos Emirados não responderam pedidos de comentários. O Departamento de Estado americano também não quis falar sobre os desentendimentos entre os dois aliados no Golfo, mas um porta-voz declarou que “resolver o conflito no Iêmen continua sendo uma prioridade elevada”.
— Estamos trabalhando e reunindo as nações do mundo, todas que têm um interesse em ver isso [ataques no Mar Vermelho] acabar — disse, na sexta-feira, em Israel, o conselheiro de Segurança Nacional, Jake Sullivan.
Impactos financeiros
Ele chamou os ataques de “ameaça material” ao comércio internacional, e disse que o secretário de Defesa, Lloyd Austin, planeja uma visita ao quartel de comando regional da Marinha dos EUA no Bahrein para supervisionar as ações.
“Existe uma pressão crescente para que Washington tome ações mais robustas”, disseram, em comunicado, analistas do Rapidan Energy Group, um grupo de assessoria de risco baseado na capital americana. Isso, aliado à intensificação dos embates entre Israel e o grupo libanês Hezbollah, também aliado do Irã, “pode levar os mercados a precificar os riscos geopolíticos”.
Isso seria um ponto de virada para investidores globais. Desde o final de outubro, indicadores israelenses, como o shekel, tiveram alta, uma vez que os mercados viam com otimismo a possibilidade de que a guerra ficasse contida em Gaza.
Os houthis estão soando cada vez mais agressivos. Na sexta, o grupo realizou uma grande marcha em Sana para “fazer com que o mundo veja que estamos aqui, e que Gaza e a Palestina não estão sós”.
Nas últimas semanas, eles sequestraram um navio e tentaram capturar outros, ao mesmo tempo em que lançaram mísseis contra embarcações no Sul do Mar Vermelho, perto do Estreito de Bab el-Mandab. Os militantes disseram que estão atingindo navios com proprietários israelenses ou que estejam rumando para o país. Na semana passada, um comandante ameaçou começar a afundar navios.
As empresas de navegação estão cada vez mais preocupadas. Os ataques elevaram os preços dos seguros, e nesta segunda-feira a gigante do setor de energia BP disse que suspenderia todas as viagens pelo Mar Vermelho.
A MSC Mediterranean Shipping Co., a maior operadora de contêineres do mundo, e a Maersk tomaram ações semelhantes nos últimos dias. Isso significa que seus navios terão que contornar a África ao invés de usar o Canal de Suez, adicionando milhares de quilômetros às viagens entre Ásia e Europa. No domingo, o operador do Canal de Suez disse que 55 navios decidiram fazer a rota mais longa desde 19 de novembro.
Os EUA acusam o Irã de ter permitido que os houthis atacassem navios, algo que Teerã nega.
— Embora sejam os houthis a apertar o gatilho, eles estão sendo armados pelo Irã — disse Sullivan. — O Irã tem a responsabilidade de tomar medidas para cessar os ataques.
Os houthis receberam financiamento e treinamento de Teerã pelos últimos oito anos. Eles integram o chamado “Eixo de Resistência” contra EUA e Israel, liderado pelo Irã e que conta com Hamas, Hezbollah e outros grupos. O Hamas é considerado um grupo terrorista pelos EUA e União Europeia.
Mesmo assim, o Ansarallah, como os houthis são oficialmente conhecidos, não se veem como simples seguidores das diretrizes iranianas, afirma Bernard Haykel, professor de Estudos do Oriente Médio na Universidade Princeton. O grupo tem um “modelo ideológico diferente”, que não está “tão firmemente conectado” ao do Irã e do Hezbollah, afirma o professor.
Eleonora Ardemagni considera ser um erro ver os houthis como meros “peões ou fantoches” do Irã. Seus motivos vão bem além da guerra Israel x Hamas: eles querem consolidar sua posição no Iêmen e projetar a si mesmos como uma força regional a ser reconhecida, o que complica os esforços para combatê-los.
A guerra no Iêmen começou em 2014, quando os houthis conquistaram Sana e resistiram a anos de bombardeios de uma coalizão liderada pelos sauditas e pelos Emirados. Os países tentam desde então se afastar do conflito, e os sauditas buscam um acordo de paz com os houthis desde o começo do ano.
Com integrantes do governo israelense sugerindo que a guerra em Gaza pode durar mais alguns meses, os houthis, que também lançaram drones e mísseis contra Israel desde outubro, disseram que estão prontos para manter a ofensiva.
“Nós esperamos combater contra qualquer força de Israel no mar”, disse, na semana passada, o vice-chanceler dos houthis, Hussein al-Izzi, no X (antigo Twitter).
Mustapha Norman, um ex-diplomata iemenita, afirma que o grupo não pode ser menosprezado.
— Eles sonham com o dia em que americanos ou israelenses os atacarem, porque isso será o ponto em que se tornarão uma real força de resistência — disse, durante uma conversa no centro de estudos britânico Chatham House. — Esse é o jogo que estão jogando.