Argentina

Entrevista: "Pedimos um tratamento diferenciado para o Brasil e o Mercosul", diz chanceler de Lula

Brasil quer promover um debate sobre o uso dos organismos financeiros em presidência do G20

Chanceler Mauro Vieira - Lula Marques/ Agência Brasil

O governo brasileiro acompanha com atenção o anúncio de medidas pelo presidente da Argentina, Javier Milei, e espera que, se houver ações com impacto no comércio, como a dolarização da economia, que o Brasil e os demais sócios do Mercosul recebam um tratamento diferenciado. A informação é do chanceler do governo Lula, Mauro Vieira, que revelou, em entrevista ao Globo, que conversou duas vezes com Milei, durante a posse do argentino, em Buenos Aires. Ouviu que o governo do país vizinho quer manter um bom relacionamento com o Brasil.

Vieira, que foi chanceler da ex-presidente Dilma Rousseff e embaixador do Brasil na Argentina e nos Estados Unidos, fez um balanço do primeiro ano da política externa brasileira. Disse que a presidência do G20 será uma grande oportunidade para o Brasil se projetar no cenário internacional e destacou, também como prioridades para 2024, a integração sul-americana, o acordo comercial entre Mercosul e União Europeia e a continuidade no processo de reaproximação com China e Estados Unidos.

Os presidentes Lula e Javier Milei não se falam. Como serão as relações do Brasil com os vizinhos?
As relações entre Brasil e Argentina são importantes, densas e centrais dentro do conjunto do Mercosul. Esse grupo de quatro países (Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai), acrescido da Bolívia, mostra que um não pode viver sem o outro. O governo argentino tem dado ótimos sinais de abertura, de desejo de promover diálogos, independentemente de qualquer outra discussão.

Como?
Eles reconhecem a centralidade da relação. A chanceler argentina Diana Mondino fez, com instrução do presidente Milei, um gesto muito importante, quando esteve aqui quinze dias antes da posse, num domingo, para uma reunião comigo, seguida de almoço. Depois, estive com ela em Buenos Aires e fui à posse do presidente Milei, para quem levei os votos do governo brasileiro. Estive com ele duas vezes com ele (Milei). No dia da posse, ele declarou que quer manter o melhor relacionamento possível com o Brasil, coisa que, ressaltei, é desejo do presidente Lula. Podemos fazer avanços no comércio bilateral importantíssimos.

Milei vem promovendo mudanças profundas na economia argentina. Há preocupação sobre o impacto de medidas como a dolarização no comércio o Brasil, por exemplo?
Evidente, a Argentina está implementando um programa de ajuste econômico, que vai ter impacto em comércio. Isso é inevitável, porque eles estão em uma situação que exige um controle de inflação, da oscilação cambial. Por isso, precisam de medidas que devem ter resultados a médio e longo prazos. No caso de medidas de comércio exterior, o que pedimos é que haja um tratamento diferenciado para o Brasil e o Mercosul. Estamos sempre dispostos a conversar e discutir qualquer dificuldade. Não há relação bilateral que não tenha pontosa serem discutidos. Com países com os quaiss temos grande corrente de comércio, como EUA, China, União Europeia e México, há sempre questões a tratar.

Houve um acordo entre os presidentes da Guiana e da Venezuela, na semana passada, que afastou, pelo menos temporariamente, a possibilidade de os venezuelanos tentarem tomar a região de Essequibo. Qual a sua avaliação, já que o Brasil faz fronteira com os dois países?
Durante a cúpula do Mercosul (semana passada, no Rio), o presidente Lula propôs que o mediador fosse o país que preside a Celac, que é São Vicente e Granadinos. A ideia foi imediatamente aceita pelos dois chefes de Estado, Guiana (Irfaan Ali) e Venezuela (Nicolás Maduro). Parecia uma coisa quase impossível colocá-los juntos. Isso distendeu um pouco a tensão que havia antes.

Mercosul e União Europeia negociam um acordo comercial há duas décadas. Acredita que as negociações serão mesmo concluídas?
Estamos trabalhando intensamente. O novo governo argentino, inclusive, manifestou apoio à construção do acordo. Nosso limite temporal é fevereiro e temos feito muitos avanços na questão do meio ambiente e em compras governamentais. Ainda estão pendentes algumas coisas, como certificação dos produtos na exploração para exportação. Há um desejo da presidenta da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, de concluir nesse período também. Ela tem dito que é até fevereiro.

A visita do presidente Lula à China resultou em vários acordos. Qual a perspectiva para 2024?
O saldo comercial brasileiro com a China é maior do que o saldo comercial com Estados Unidos e União Europeia somados. Vamos completar 50 anos de relações bilaterais, ano que vem, e temos que celebrar. Temos uma relação com desdobramentos em várias áreas, como saúde, ciência e tecnologia. China é um parceiro do Brics, fundador do bloco. Esperamos receber a primeira visita, em 2024, do presidente Xi Jinping ao Brasil.

E os Estados Unidos?
Em 2024, vamos comemorar 200 anos de relações bilaterais, o que não é pouca coisa. O único país que tem relações mais antigas com o Brasil é a Argentina, que comemorou este ano 200 anos. Os EUA sempre foram parceiros importantes em comércio e investimentos. Há uma grande cooperação na área da ciência e tecnologia e universitária também. O presidente Lula esteve lá este ano. Até o ano passado, as relações estavam abandonadas.

Acredita que se Donald Trump ganhar a eleição nos EUA, as relações bilaterais podem ser prejudicadas?
Os EUA são parceiros importantes e vamos continuar tendo diálogos. Eles estão em um processo eleitoral, não há muito o que dizer.

O Brasil vai sediar, em Belém, a COP 30, em 2025. O governo já está se preparando para esse mega evento no Pará?
Isso vai requerer um grande esforço na parte substantiva e na parte de logística. Estamos trabalhando com o governo do Pará. A COP será um momento importante de revisão do Acordo de Paris, das contribuições nacionais, que são voluntárias para evitar que o aquecimento global passe de 1,5 grau centígrado. Esse cenário mostra a necessidade de mais mecanismos e fontes de financiamento para evitar o desmatamento e todas as práticas que agridem o meio ambiente.

Qual o balanço da política externa do governo Lula neste ano?
Acho que foi extremamente positivo. Foi um ano de muitíssimo trabalho, muitos desafios. O resultado não poderia ter sido melhor. Bilateralmente, o presidente Lula retomou os contatos com os grandes centros, como os Estados Unidos, a China e a União Europeia. Na região, ele cuidou dos membros mais próximos do Mercosul, esteve na Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos), na Argentina, no Uruguai, no Paraguai, e tomou iniciativas importantíssimas, como a reunião de presidentes da América do Sul e a cúpula de países amazônicos de Belém, além da COP28, nos Emirados Árabes Unidos. E ainda aproveitamos que tínhamos mais um ano de mandato no Conselho de Segurança. Jogamos fora o primeiro ano (no governo Bolsonaro), mas pelo menos a partir de 1º de janeiro retomamos nossas posições tradicionais e fomos reconhecidos amplamente nessa tentativa. Na presidência do Mercosul, foi fechado um acordo comercial com Singapura.

A presidência do G20 será a principal vitrine do Brasil em sua política externa em 2024?
O G20 é uma plataforma enorme, gigantesca. Melhor coisa para a inserção internacional, para a visibilidade, não poderia haver. Os temas centrais escolhidos pelo presidente Lula foram muito bons e põem em evidência as posições do Brasil no convívio internacional, como o combate à desigualdade, à fome e à pobreza. Destaco também a transição energética e o desenvolvimento sustentável e,em terceiro lugar, a reforma da governança global, que é absolutamente indispensável. Se não fosse necessário, nós não estaríamos agora diante deste impasse desde o dia 7 de outubro (quando começou o conflito entre Israel e o grupo terrorista Hamas), que não se consegue dar um passo adiante. O que se pede é ajuda humanitária, uma trégua, e me parece que tem países que não gostam, que não querem trégua ou auxílio humanitário.

O que significa para o Brasil a presidência do G20?
É a primeira vez que o Brasil exerce a presidência. Estamos prevendo mais de cem reuniões, mais de 20 encontros ministeriais. Saúde, educação, cidades, ciência e tecnologia, todas as áreas estão presentes na agenda do G20. A organização de tudo isso não é fácil. Haverá uma reunião a cada três dias. A primeira ministerial será em fevereiro e a última uma cúpula presidencial. Uma das coisas que estamos propondo na trilha de finanças é uma discussão, com grandes economistas, sobre os organismos financeiros internacionais, que deveriam ser usados de modo mais democrático e abrangente, sem imporem tantas condicionalidades. Que tenham um olhar mais desenvolvimentista, que dê aos países condições de sair das dificuldades sem matar o paciente, sem fazer uma receita que asfixia. A África tem uma dívida de quase um trilhão de dólares e os países precisam de mecanismos que permitam pagar a dívida. Ninguém propõe um calote.

Em que outras frentes a diplomacia brasileira vai trabalhar?
Vamos continuar a ter desafios na ONU, como a reforma do Conselho de Segurança e da Organização Mundial do Comércio (OMC). O nosso poder é o poder da diplomacia e da discussão. O multilateralismo é nossa melhor arma. Queremos que o comércio volte a ser como foi no passado, mas administrado pela OMC. E temos a integração sul-americana, que é uma prioridade. Assim como a revitalização da Organização dos Estados Americanos (OEA), que terá eleição ano que vem.