Trump contra-ataca: Esperado segundo round de republicano contra Biden em 2024 desafia a democracia
Avanço do 'trumpismo vingativo' põe em risco o sistema eleitoral e o Judiciário, e traz à tona o nacionalismo de direita, o aumento da misoginia e a perseguição a opositores, diz imprensa americana
Nova York. Sexta Avenida, Hotel Hilton Midtown, 2h39 da madrugada de quarta-feira, 9 de novembro de 2016. Os urros de euforia quase deixam passar despercebidos entreolhares incrédulos de estrategistas da agora vitoriosa candidatura de Donald Trump à Presidência dos Estados Unidos. Com a confirmação da derrota em Wisconsin, por 22.748 votos, ou 0,77%, a ex-secretária de Estado Hillary Clinton, do Partido Democrata, acabara de perder o Colégio Eleitoral.
Manhattan se colore do vermelho do Partido Republicano, e apoiadores mais exaltados identificam os repórteres acampados nos quatro blocos que separam o quartel-general da campanha da Trump Tower, um dos endereços oficiais do presidente eleito. Oferecem então uma prévia da intolerância, xenofobia e afronta à democracia que marcariam os quatro anos do trumpismo na Casa Branca — “Voltem para seus países”, “Agora vocês vão ver”.
Alerta para 'ditadura'
Claremont, estado de New Hampshire. Tarde de sábado, 11 de novembro deste ano, feriado do Dia dos Veteranos. Do lado de fora da Escola Pública Stevens, apoiadores de Trump alteram a rotina dos moradores da cidade de 13 mil habitantes. Militantes celebram os dólares arrecadados com a venda de propaganda em mensagens como “defenda a bandeira americana, ajoelhe-se diante da cruz”. Recebido como estrela pop, o candidato favorito às primárias republicanas, hoje à frente do democrata Joe Biden nas pesquisas para a disputa de 2024, joga, por duas horas, gasolina no fogo no palco improvisado.
Promete honrar os soldados americanos “eliminando” inimigos internos: progressistas e a esquerda. Os adversários políticos, em eco nazifascista, agora são “vermes”. Assegura ser “orgulhoso” negacionista das eleições de 2020, em que o atual presidente (“velhaco corrupto”) o derrotou. Os imigrantes “envenenam” o sangue do país. Promete “vingança”. Escancara a senha de sua versão 2024: Trump contra-ataca.
Autor de, em tradução livre, “Trump: o polarizador, 2017-2021”, Peter Baker cobre a Casa Branca desde os anos Bill Clinton. Já testemunhou (quase) tudo em Washington. No começo deste mês, no New York Times, pediu atenção do leitor ao que aponta como uma “quase confissão”. Dias antes, no Washington Post, o historiador Robert Kagan — estrela do neoconservadorismo — alertara, sem mais delongas: “se Trump vencer Biden, os EUA podem virar uma ditadura, com perseguição a funcionários públicos, ataque à imprensa, vendetas pessoais”.
O incremento dos sinais autoritários do Trump 2.4 em relação ao 1.6 e mesmo ao 2.0, é detectado, na pena de Baker, na reação de trumpistas graúdos ao artigo de Kagan. Acusados de gestar um regime autoritário, eles responderam com a ameaça de prisão do acadêmico de 65 anos se retomarem o Poder. “Agora vocês vão ver.”
Na última terça-feira, a Suprema Corte do Colorado determinou a retirada de Trump da cédula eleitoral das primárias estaduais. Quatro dos sete juízes aceitaram o pedido de oito cidadãos indignados com a possibilidade de se votar em alguém que “participara de ato de traição contra o Estado”. A base argumentativa está na emenda de 1868 à Constituição destinada, entre outras medidas, a evitar que confederados sulistas disputassem cargos eletivos após a Guerra Civil (1861-1865).
As implicações práticas da decisão do Colorado são quase nulas — ela precisa ser referendada pela Suprema Corte dos EUA, e o prazo para se modificar a cédula é exíguo, nos primeiros dias de janeiro. Mas seu ineditismo simbólico escancara o que a Justiça americana ainda não resolveu: o papel do então presidente na invasão do Capitólio, em janeiro de 2021. Trump sofreu impeachment da Câmara dos Deputados, então com maioria democrata, foi absolvido pelo Senado, mas, além de Biden, enfrentará nos próximos meses quatro processos criminais e 91 acusações na Justiça.
Biden atrás em pesquisa
A revista progressista The Atlantic, que teve seu primeiro exemplar impresso uma década antes da emenda do século XIX citada pelos juízes do Colorado, publicou edição extra neste mês. Nela, textos de 24 colaboradores chegam, por caminhos distintos, à mesma conclusão: um eventual segundo governo Trump será pior do que o anterior. Do descrédito do sistema eleitoral ao Judiciário, do nacionalismo de direita à relação com a China e o enfraquecimento da Otan, do aumento da misoginia à perseguição a opositores, o próprio significado de “ser americano” está, aponta a publicação, em risco de extinção com o avanço autoritário do trumpismo vingativo.
Os perigos para a democracia americana com uma vitória do Trump 2.4 vêm sendo igualmente enfatizados pelo impopular governo Biden em sua defesa por mais quatro anos na Casa Branca. Mas, além da percepção dos limites de se pregar para convertidos, multiplicam dentro do Partido Democrata as dúvidas sobre se essa argumentação será suficiente até mesmo para tirar de casa os eleitores que formaram a coalizão vitoriosa de 2020.
Quinze dias após as eleições de novembro, Biden completará 82 anos e, revelam as pesquisas, anima hoje ainda menos o eleitorado do que há quatro anos, quando já era percebido como pouco ágil e vacilante. Trump, aos 77, por sua vez, busca vender como prova de vitalidade o contra-ataque com vocabulário de autocrata em seus palanques.
Parece estar dando certo. Pesquisa New York Times/Siena College divulgada semana passada mostra o republicano à frente (46% a 44%), a aprovação do governo no chão (37%) e dados ainda mais alarmantes para os democratas. Eleitores de 18 a 29 anos, críticos ao apoio de Biden a Israel na guerra contra o Hamas, preferem Trump (49% a 43%), e 1/5 dos apoiadores concordam que o autoritarismo está o avançando no flanco republicano e demonstram preocupação, mas dizem preferir Trump assim mesmo. Nunca tantos homens negros (22%) apoiaram o republicano.
Em estados decisivos para o pleito, como Geórgia e Michigan, o voto em massa dos afro-americanos é obrigatório para a reeleição de Biden. Reunião de lideranças democratas afro-americanas em Washington, semana passada, sublinhou o risco de se apostar fichas demais na denúncia do avanço autoritário trumpista, com consequências globais óbvias, porém mais abstratas para o eleitor.
Discurso ineficaz
O New York Times passou uma semana de dezembro na Geórgia para entender o desânimo com Biden entre os negros (33% da população local). Melinee Calhoun, do Black Lives Matter, detecta “sensação de apatia geral, mesmo frente a um republicano identificado com supremacistas brancos”.
O elefante na sala é a escalada da inflação, refletida no aumento dos alimentos e dos juros para financiamento da casa própria e de bolsas escolares. Eleitores dizem não “querer votar” em Trump, mas também são incapazes de identificar “uma melhora sequer” nos anos Biden.
O discurso governista de crescimento da economia lhes diz pouco. O Times percebeu um “ponto de ruptura” em eleitores conscientes de serem a espinha dorsal da coalizão democrata desde 1968, porém cansados de não receberem benefícios sociais de vulto, inclusive no governo do “vice de Obama”. A missão de salvar uma democracia incapaz de empurrá-los andares acima na pirâmide econômica não parece ser suficiente para levá-los às urnas em novembro. E evitar assim o sucesso do contra-ataque de Trump.