"Vai na Fé", "Elas por Elas" e "Fim": os melhores e piores na teledramaturgia em 2023
O ano, para as séries e novelas, foi marcado por pouca inovação e boas surpresas
Grandes expectativas podem gerar frustrações, mas também surpresas. Passado todos os apuros recentes, a teledramaturgia vislumbrou 2023 como um ano de continuidade e crescimento. Distante das grandes apostas, boa audiência e faturamento estavam na ordem do dia das emissoras, ainda que os executivos saibam que o sucesso decorre de fato do imponderável. A escolha anual de “Melhores e Piores de TV Press”, feita por editores dos jornais assinantes e pela equipe que produz o conteúdo de TV Press, reflete bem esse momento de pouco risco que marcou a teledramaturgia em 2023. A principal aposta do ano foi no nome de Walcyr Carrasco para levantar o horário das nove com “Terra e Paixão”, mas quem mexeu com a audiência foi mesmo Rosane Svartman com sua “Vai na Fé”, às 19h.
Um dos mais frutíferos profissionais da emissora, a persistência de Walcyr o destacou na categoria “Melhor Autor”. Na mesma linha resignada, a atual novela das nove ainda garantiu o nome de Eliane Giardini, intérprete da justiceira macabra Ágatha como “Melhor Atriz”. O sucesso das sete, entretanto, foi consagrado como “Melhor Novela” e “Melhor Diretor”, uma consagração para o até então pouco conhecido Paulo Silvestrini.
Em um ano que mirava apenas o sucesso, nada mais seguro que um remake para garantir o saudosismo e a curiosidade do público. Porém, mal concebido e com horário equivocado, a nova versão de “Elas por Elas” não surtiu o efeito esperado e acabou definida como “Pior Novela”. Em compensação, trouxe Lázaro Ramos de volta à Globo na pele do icônico Mário Fofoca, em uma atuação inspirada e atualizada, digna de “Melhor Ator” do ano.
A força do streaming, em especial o da Globo, brindou o público com produções que evidenciam a força do audiovisual brasileiro. “Melhor Série” do ano, “Fim” reúne o texto de Fernanda Torres com a visão pungente de Andrucha Waddington e Daniela Thomas, e o talento de atores de tevê que conseguem se renovar em cena, casos de Fábio Assunção, Bruno Mazzeo, Marjorie Estiano, Débora Falabella e Emílio Dantas, entre outros. Com os pés no chão e se surpreendendo aos olhos do público, a tevê em 2023 fez questão de se manter segura e confortável.
Melhor Novela
"Vai na Fé", da Globo
Poder da palavra
São muitos os fatores que envolvem o sucesso de um folhetim. Além do potencial popular da história e do carisma de personagens e intérpretes, é importante contar com uma novelista hábil em adaptações e reviravoltas que possam fisgar e manter a fidelidade do público.
Vendida inicialmente como a primeira novela evangélica da Globo, “Vai na Fé” foi além de qualquer rótulo e se tornou o grande sucesso do ano. Equilibrando bem o tom de conto de fadas e o realismo essencial, a trama de Rosane Svartman preencheu seus capítulos com temas relevantes como racismo, abuso sexual e violência doméstica. Tudo sem perder a leveza da faixa das sete e proporcionando momentos de muita inspiração para seu elenco, que reforçou talentos como Sheron Menezzes – em sua merecida primeira heroína –, além de Carolina Dieckmann, Regiane Alves e Renata Sorrah, entre outros.
Com olhos de farol, a novela também apresentou boas surpresas, como Samuel de Assis, na pele do protagonista Ben, e o talento de Clara Moneke, intérprete da espevitada Kate, que quase tomou a novela para si. Ao destacar um elenco majoritariamente preto e levantar uma bem-vinda discussão religiosa, “Vai na Fé” garantiu seu devido lugar na história da teledramaturgia e no coração do público.
Pior Novela
"Elas por Elas", da Globo
Erro estratégico
É historicamente notório que novelas de época funcionam muito bem na faixa das seis. É por isso que a Globo investe tanto neste filão. Porém, de vez em quando, é preciso dar um respiro. Disposta a dar uma renovada no horário, a Globo idealizou um remake de “Elas por Elas”, grande trama oitentista do mestre Cassiano Gabus Mendes, que fez muito sucesso originalmente às 19h.
Na atualização, o roteiro de Thereza Falcão e Alessandro Marson abafou um pouco o tom de comédia rasgada típico das novelas de Cassiano para apostar em um esquema mais melodramático, que tem mais a ver com às 18h. Com elenco digno de novela das oito e direção certeira de Amora Mautner, a novela até começou bem, mas logo ficou perceptível que a estratégia da Globo para a faixa foi equivocada.
Além de não conversar com o público cativo das seis, o texto perdeu grande parte da sofisticação do original ao ter de ceder demais para o melodrama. Quatro décadas separam a versão original de “Elas por Elas”, de 1982, e a atual. Em sintonia com as mudanças comportamentais do período, o roteiro tem o trunfo de atualizar comportamentos e situações sem soar didático. Porém, sem a verve cômica ideal, o resultado é pedante e desinteressante. Mesmo com todo potencial para o êxito, “Elas por Elas” é uma novela no lugar e no momento errado.
Melhor Série
“Fim”, do Globoplay
Dose de legado
Só pelos nomes envolvidos, a expectativa pela estreia de “Fim” já era enorme. Baseada no livro homônimo de Fernanda Torres, lançado em 2013, a produção começou a ser desenhada em 2019. Em 2020, as gravações foram suspensas por conta da pandemia e só retomadas de fato no início de 2022.
Disponibilizada no Globoplay em meados do último mês de novembro, a estreia foi além de qualquer expectativa. O texto vigoroso, sedutor e irônico de Torres ganhou a adaptação perfeita pelas mãos de seu marido, Andrucha Waddington, e da conceitual Daniela Thomas. Em cena, “Fim” consegue reunir grandes nomes da teledramaturgia sem apelar para arquétipos. Por isso, é possível ver Fábio Assunção totalmente renovado em cena ao viver o errante Ciro, um dos protagonistas da trama.
A surpresa fica por conta da atuação visceral de Bruno Mazzeo como o hedonista Silvio, que retira o ator do conforto do humor ao personificar o hedonismo machista de forma crua e antiga. Do time feminino, Marjorie Estiano dá mais uma prova da grande atriz que é, e “Fim” ainda garante a Débora Falabella uma personagem do quilate de Irene. Com cenografia, direção de arte e caracterização caprichadas, a obra é uma viagem ao longo de quatro décadas por um Brasil entre a vida e a morte.
Melhor Ator
Eduardo Sterblitch, o Sérgio de “Os Outros”, do Globoplay
Mudança radical
Poucas transições de carreira são tão bem-sucedidas como a movimentação profissional de Eduardo Sterblitch. Conhecido pelo humor, o ator ganhou repercussão nacional ao viver o irritante Freddie Mercury Prateado do extinto e grotesco “Pânico na TV”. Completamente distante do humor duvidoso que o catapultou aos holofotes, Sterblitch chegou à dramaturgia da Globo pronto para experimentar novas possibilidade.
Na série “Os Outros”, disponível no Globoplay, o ator mostra uma faceta vilanesca e dramática quase inimaginável na pele do miliciano violento Sérgio. Ao longo de todos os episódios, é quase impossível lembrar dos tempos de “Pânico”. O humor pode ter sido responsável por apresentar Sterblitch ao grande público, mas é no drama que ele se tornou um ator diante das câmeras e dos espectadores.
Melhor Atriz
Eliane Giardini, a Ágatha de "Terra e Paixão", da Globo
Alto quilate
De férias das novelas desde 2021, Eliane Giardini foi chamada às pressas por Walcyr Carrasco para uma missão bem complexa em “Terra e Paixão”: interpretar uma personagem que morreu no primeiro capítulo da trama e que teve de ser ressuscitada para que a história ganhasse fôlego. Na base da amizade que construiu ao longo dos anos com o autor, Eliane topou entrar em uma novela confusa, sem ganchos e bem distante de ser o sucesso agro que estava previsto.
Mesmo sem tempo de preparação e sem a mesma intimidade com o texto que os demais colegas de elenco, Eliane entrou de cabeça na empreitada, com a capacidade cênica que lhe é peculiar. De forma rápida, a atriz entendeu e conseguiu entregar as ambiguidades de Agatha, que se tornou tanto dos mocinhos quanto dos vilões e foi a antagonista que a história precisava para repercutir na audiência.
Melhor Ator Coadjuvante
Lázaro Ramos, o Mário Fofoca de “Elas por Elas”, da Globo
Namoro retomado
Em 2021, Lázaro Ramos e a Globo anunciaram o fim do vínculo exclusivo após 18 anos de contrato. Livre para o mercado, o ator logo assinou com o Prime Video, onde além de atuar, também garantiu a função de criador de conteúdo. Assim que o remake de “Elas por Elas” foi ganhando forma, entretanto, Lázaro e a antiga emissora começaram a flertar novamente. Ter o ator no projeto era um dos desejos da diretora Amora Mautner e interpretar o detetive Mário Fofoca, eternizado pelo saudoso Luiz Gustavo, era um sonho de infância do artista baiano.
Apesar dos deslizes da atual novela das seis, é nítido o acerto da escalação de Lázaro para o papel, que acaba sendo o principal elo com o humor clássico e cheio de nuances da versão original. Em cena, Fofoca funciona como uma grande homenagem, mas graças ao talento do intérprete, surge atualizado e com luz própria.
Melhor Ariz Coadjuvante
Clara Moneke, a Kate de "Vai na Fé", da Globo
Momento de brilhar
Novela é obra coletiva. Por isso mesmo, quando o produto é um sucesso, é normal que outros talentos também saltem aos olhos. Em seu primeiro papel na tevê, Clara Moneke sentiu a repercussão avassaladora da televisão logo nas primeiras semanas da novela das sete. A novata atriz rapidamente chamou a atenção pelo seu tempo de comédia ao viver a periguete bem-humorada Kate.
Ela, no entanto, também rendeu cenas sensíveis e dramáticas ao encarar uma relação abusiva com o vilão Theo, papel de Emílio Dantas. Toda essa mistura bem-sucedida no humor e no drama já rendeu frutos para Clara, que acaba de protagonizar o filme “Ritmo de Natal”, primeiro longa do Núcleo de Filmes dos Estúdios Globo.
Melhor Autor(a)
Walcyr Carrasco, de "Terra e Paixão", da Globo
Se vira nos 30
Walcyr Carrasco é do tipo que faz de tudo pelo sucesso. Acostumado com a aceitação do público, nas poucas vezes que suas histórias não conquistaram a audiência, o autor não poupou esforços para alterar rotas e perfis de personagens na ânsia de uma possível virada na repercussão. Lançada em maio deste ano, “Terra e Paixão” gastou sua trama principal ao longo dos primeiros meses e parecia não convencer o telespectador.
Já sem muita história para desenvolver, o autor convocou a amiga e pupila Thelma Guedes para compor a equipe de roteiro. As mudanças começaram a acontecer em agosto, mas só em outubro é que a audiência passou a corresponder às expectativas. Com o público novamente nas mãos, Walcyr exibiu todo seu jogo de cintura ao longo de um ano difícil. Apesar dos tropeços em “Terra e Paixão”, ele não se deixou abater pela pressão, conseguiu virar o jogo e mostrar porque é o autor mais requisitado da Globo.
Melhor Diretor
Paulo Silvestrini, de "Vai na Fé", da Globo
Visão popular
Desde que passou a não renovar o contrato de diretores experientes e caros como Luiz Fernando Carvalho e Rogério Gomes, a Globo passou a usar talentos internos para manter a máquina funcionando. Foi neste movimento que o nome de Paulo Silvestrini ganhou voz e poder dentro da emissora.
Na empresa desde meados dos anos 1990, quando estreou como assistente de direção de sucessos como “Quatro por Quatro” e “História de Amor”, Silvestrini trabalhou nos principais núcleos de direção da casa, em especial os comandados por Ricardo Waddington e Denise Saraceni. Em 2017, assinou sua primeira direção artística com a premiada “Malhação – Viva a Diferença” e foi justamente o bom trabalho com o público jovem que o aproximou do texto de Rosane Svartman.
Juntos pela primeira vez, Paulo e Rosane tiveram o entrosamento certo para consolidar o sucesso de “Vai na Fé”, produção que apresentou uma estética leve, bem acabada e sempre a serviço da história. Com uma visão eficaz e pop do mundo, Silvestrini agora tem outro patamar dentro da Globo.