Decreto no Equador abre portas para risco de impunidade para graves abusos, diz diretora da HRW
Juanita Goebertus afirmou que a medida, instaurada pelo presidente Daniel Noboa, não é a solução, afirmando que combate ao crime organizado deve focar em investigações e ataques às suas estruturas
Em sua primeira crise desde que assumiu o poder, o presidente do Equador, Daniel Noboa, decretou estado de Conflito Armado Não Internacional, ordenando as Forças Armadas a “neutralizar” 22 grupos armados. Mas, para a diretora do Human Rights Watch (HRW) para a América Latina, Juanita Goebertus, a medida não é a solução para a crise que se abate sobre o país.
Em entrevista ao jornal El Tiempo, que faz parte do Grupo de Diários da América (GDA), a diretora afirmou que a determinação de Noboa “abre as portas para graves abusos cometidos com impunidade”, e que ações definitivas contra o crime organizado passam por investigações sólidas e ataque direto às suas estruturas.
O encontro com a dirigente ocorreu durante a apresentação do relatório anual do HRW sobre a situação dos direitos humanos no mundo ao longo de 2023, nesta quinta-feira. Goebertus observa que os ataques ao direito de voto e à participação política, bem como o crescimento da insegurança e dos fluxos migratórios, estiveram no topo da agenda de preocupações regionais.
Ela também alerta que o retorno de Donald Trump à Casa Branca poderia ter consequências "dramáticas" para a América Latina caso seu governo resulte em um aumento do autoritarismo nos EUA. O país escolherá seu próximo presidente em novembro deste ano.
Quando conversamos em 2022, por ocasião da entrega do seu relatório anual daquele ano, a senhora expressou preocupação com o aumento da violência e a deterioração da democracia e dos direitos humanos na região durante esse período. Qual é a sua avaliação de 2023?
Infelizmente, a situação não melhorou. O ano de 2023 foi marcado por pelo menos três fenômenos preocupantes na região: ataques ao direito de voto e à participação política em países como Brasil e Guatemala; o crescimento da insegurança, como no Equador e no Haiti; e o enfraquecimento das instituições que garantem o controle do exercício do poder, como foi o caso de El Salvador, Peru e México.
Apesar de ser um tema atual, o ano passado foi, sem dúvida, marcado por um fluxo migratório sul-norte que bateu todos os recordes anteriores e teve um alto impacto em vários países da região. Qual é o principal motivador desse êxodo e o que podemos esperar para 2024?
Por trás desse êxodo estão regimes como o da Venezuela, responsável por crimes contra a humanidade por meio de detenções arbitrárias e tortura, e pela crise humanitária desencadeada por sua má gestão econômica. Há governos como o do Haiti, incapaz de proteger sua população das gangues que controlam a capital, assassinam jovens e estupram mulheres, bem como governos democráticos, como o do Equador, que não conseguiram atender às necessidades de seu povo. O fluxo de migrantes na região aumentou de 7 para 15 milhões nos últimos 15 anos. Se não resolvermos esses problemas na origem, temo que esse fluxo migratório só continuará a crescer.
Em um relatório anterior, publicado em novembro, você considerou os Estados Unidos parcialmente responsáveis pela crise migratória, especialmente a que está ocorrendo no Darien Gap, devido às suas políticas migratórias restritivas. Você vê alguma mudança nessa dinâmica?
As políticas migratórias restritivas dos Estados Unidos fracassaram. Elas não só não atingiram seu objetivo de reduzir o número de migrantes que chegam ao país, como, [de maneira] ainda mais grave, forçaram as pessoas a usarem rotas muito mais perigosas e que violam os direitos humanos, como o Darién, negociando com países como México e Guatemala para impor vistos. Na prática, isso acabou fortalecendo grupos do crime organizado, como o Clan del Golfo, que recebe mais de 57 milhões de dólares por ano graças a esse negócio. Também contribuiu para colocar em risco a vida de centenas de milhares de pessoas. Além do debate eleitoral nos EUA, deve haver um consenso de que o que foi feito até agora não está funcionando. Em 2024, serão 40 anos desde a Declaração de Cartagena e acredito que essa é uma oportunidade para que os governos da região e dos Estados Unidos sejam honestos e coloquem em prática uma estratégia regional robusta sobre migração.
Nesta semana, o Equador enfrentou uma situação sem precedentes quando um grupo armado interrompeu uma transmissão ao vivo de um canal de televisão em um dia de violência em todo o país que levou o presidente Daniel Noboa a anunciar um estado de "conflito interno". O que você acha dessa medida?
A situação que os equatorianos estão sofrendo nas mãos dessas gangues criminosas é dramática e exige respostas eficazes para proteger a população. Infelizmente, não acredito que a decisão de reconhecer um conflito armado no país seja a solução. O reconhecimento de um conflito armado deve ser uma decisão técnica baseada em uma análise rigorosa dos fatos e do direito internacional. Em vez disso, o decreto que o presidente aprovou carece de solidez jurídica e abre as portas para graves abusos cometidos com impunidade. O que o Equador precisa para enfrentar o crime organizado é de mais e melhores promotores e juízes que possam investigar efetivamente essas gangues e atacar a lavagem de dinheiro e a corrupção que permitem que elas operem no país.
Vamos falar sobre a Venezuela: Qual é a sua avaliação da situação após os acordos firmados entre a oposição e o governo de Nicolás Maduro em Barbados? Estamos à beira de um processo eleitoral transparente ou Nicolás Maduro está apenas ganhando tempo?
Buscar uma transição para a democracia na Venezuela é a maneira correta de proteger os direitos humanos no país. E o fato de os Estados Unidos apoiarem o processo de negociação e usarem sanções como um mecanismo para assegurar a introdução de garantias de transparência eleitoral é muito positivo. Mas o teste decisivo de todo o processo será se o regime permitirá que María Corina Machado, que foi democraticamente eleita como candidata da oposição, concorra. Os EUA e os governos regionais devem usar toda a sua influência para garantir que ela possa participar, independentemente de suas simpatias ideológicas. Para isso, é fundamental que os EUA não se distraiam com outros interesses, como a deportação de venezuelanos ou o aumento da produção de petróleo. Na Venezuela, o principal objetivo é, e deve ser, restaurar a democracia.
Qual é a sua avaliação da Colômbia, um país que pela primeira vez tem um presidente de esquerda no poder?
No caso da Colômbia, estamos muito preocupados com o aumento de sequestros, massacres e recrutamento de menores. A busca pela paz é um objetivo louvável, mas não isenta o governo colombiano de seu dever de proteger e garantir seus cidadãos. As disputas territoriais entre o ELN, os dissidentes das extintas FARC e o Clã do Golfo continuam mantendo a Colômbia com uma das maiores taxas de homicídios da região, principalmente de líderes sociais e defensores dos direitos humanos. Sem uma política de segurança eficaz e uma implementação completa do acordo de paz de 2016, a política de paz geral infelizmente não será bem-sucedida.
Além da Colômbia, houve aumentos nas taxas de criminalidade em muitos países da região. Como você explica esse fenômeno?
A dinâmica da insegurança é diferente em cada país. Na Colômbia, o sequestro e o recrutamento de menores aumentaram devido a disputas territoriais entre grupos armados e grupos do crime organizado. No Equador, as disputas entre redes de tráfico de drogas triplicaram a taxa de homicídios nos últimos dois anos. No Brasil, a polícia continua matando cerca de 6.000 pessoas por ano, 80% das quais são afrodescendentes, de acordo com as estatísticas mais recentes.
Existe um ponto em comum?
O ponto em comum é que várias democracias da região estão falhando em seus deveres de proteger e garantir seus cidadãos. Embora com diferenças, as reformas do setor de segurança ainda estão pendentes. Questões como a garantia do controle civil das forças militares e policiais e o fortalecimento da independência da investigação técnica judicial são essenciais para iniciar políticas de segurança eficazes que protejam os direitos humanos. Se os governos da região não começarem a tomar medidas decisivas para conter a violência homicida, outros tentarão copiar as políticas de Nayib Bukele.
Apesar do fato de você ter questionado repetidamente as políticas de segurança de Bukele em El Salvador como autoritárias, o presidente continua imensamente popular em seu país e está caminhando para uma reeleição que foi considerada ilegal. Como você explica isso?
El Salvador tem historicamente uma das mais altas taxas de homicídio da América Latina. Os governos democráticos alternaram, sem sucesso, entre negociações por debaixo dos panos com as gangues e políticas de mão pesada. Bukele, a um custo dramático para os direitos humanos e o estado de direito, está respondendo ao clamor dos salvadorenhos para combater as gangues. O problema é o falso dilema em que ele tentou nos colocar: que não é possível ter segurança e respeitar os direitos humanos. Falso! Com mais de 73.000 pessoas privadas de liberdade em quase dois anos de estado de emergência, não se conseguiu mais do que um punhado de condenações. Isso mostra que, na prática, não está havendo um desmantelamento sustentável das redes criminosas, mas sim um processo de encarceramento em massa, em muitos casos de pessoas inocentes.
Qual é a sua preocupação de que o "modelo Bukele", de "autoritarismo democrático", acabe se espalhando para o resto da região?
O que mais me preocupa no modelo Bukele é o enfraquecimento das instituições que deveriam controlar o poder. Não se deve esquecer que foi o partido dele que mudou a composição da Suprema Corte para reinterpretar a Constituição e permitir a reeleição presidencial imediata, apesar de isso ser explicitamente proibido. E isso não é exclusivo: Andrés Manuel López Obrador, no México, tentou enfraquecer as instituições eleitorais e a transparência no acesso à informação; no Peru, o Congresso abriu julgamentos políticos para o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), um órgão fundamental para garantir a independência judicial. Mas o que está acontecendo em El Salvador de forma dramática, essa erosão do sistema de freios e contrapesos, coloca em risco os cidadãos da região. A experiência de ditaduras como as de Cuba, Nicarágua e Venezuela nos mostra que, quando o Estado de Direito é destruído, os cidadãos não têm a quem recorrer para obter justiça e evitar abusos. E estamos vendo esse processo de erosão ocorrer não apenas com líderes autoritários, como Bukele ou Maduro, mas também com coalizões entre setores dos poderes legislativos e procuradorias públicas ou ministérios públicos que buscam desmantelar a separação de poderes para promover seus próprios interesses corruptos, como está acontecendo na Guatemala e no Peru.
Desconsiderar o resultado das eleições, como aconteceu no Brasil e, mais recentemente, na Guatemala, parece estar se tornando a norma...
Esse é um dos fenômenos que mais nos preocupam. O direito ao voto, a eleições livres e justas e à participação política. No Brasil, os bolsonaristas tentaram ignorar os resultados. Felizmente, até o momento, o judiciário brasileiro tem sido forte o suficiente para impedir os ataques às instituições. Na Guatemala, por outro lado, foi o Ministério Público que sofreu os principais ataques. Durante o processo eleitoral, as autoridades desqualificaram três candidatos presidenciais e, após a vitória de Bernardo Arévalo, o Ministério Público procurou retirar o status legal de seu partido, o movimento Semilla, e até insinuou que suas investigações poderiam anular sua eleição como presidente. As comunidades indígenas nas ruas e os esforços diplomáticos internacionais, liderados pelos EUA, têm sido cruciais para proteger a democracia, mas o processo ainda está em jogo. É fundamental impedir essa tentativa de golpe e garantir que Arevalo possa tomar posse no domingo para que possa exercer o cargo para o qual foi eleito.
Na Argentina, o libertário Javier Milei completou um mês após assumir o cargo presidencial sendo um outsider político. Qual a sua leitura sobre esse triunfo e como você avalia as medidas de austeridade que ele vem adotando?
A grave crise econômica da Argentina às vezes nos faz esquecer que há também uma profunda crise institucional. Todos os membros da Suprema Corte estão enfrentando um processo de impeachment abusivo e infundado, promovido pelo governo de Alberto Fernández. E passamos anos sem que o Congresso nomeasse um ombudsman ou um procurador-geral. Isso obviamente enfraquece as instituições democráticas. É nesse contexto econômico e institucional que os cidadãos argentinos elegeram um outsider como Milei. Durante a campanha eleitoral, ficamos preocupados com o fato de ele ter minimizado os crimes contra a humanidade cometidos durante a última ditadura, de ter questionado as mudanças climáticas e de ter atacado a descriminalização do aborto. Assim como fizemos durante o kirchnerismo e o governo de Mauricio Macri, estaremos atentos para denunciar quaisquer violações de direitos humanos e ataques ao estado de direito que ocorram na Argentina.
Qual é a sua análise do primeiro mês do governo Milei?
Os primeiros sinais do governo Milei têm sido preocupantes. Estamos analisando a nova regulamentação sobre manifestações, que inclui restrições excessivas ao direito de protesto pacífico. Também nos preocupa o fato de o presidente estar tentando governar por decreto, inaugurando seu mandato com um Decreto de necessidade e urgência maciço e uma solicitação ao Congresso para legislar e governar por decreto por quatro anos. Essas são práticas que seus antecessores já haviam realizado, mas que Milei está notoriamente expandindo. A experiência regional, de Alberto Fujimori a Nicolás Maduro, nos mostra que a concentração excessiva de poder no Executivo pode ser perigosa para a democracia. Aqueles que votaram em Milei, em muitos casos compreensivelmente cansados do desempenho da democracia argentina, devem ter em mente que, se apoiarem seu governo por decreto agora, poderá surgir outro governo mais tarde que tentará impor as ideias opostas da mesma forma.
Este ano, todos os olhos estarão voltados para os Estados Unidos, onde haverá eleições presidenciais e legislativas, e a possibilidade de Donald Trump voltar à Casa Branca está crescendo. O que está em jogo e que impacto sua vitória poderia ter na região?
Não nos envolvemos em debates eleitorais, mas é inegável que o governo de Donald Trump tem tido efeitos muito sérios na América Latina. Há governantes autoritários na região que parecem estar esperando por um governo Trump, com a expectativa, provavelmente com razão, de que Trump fará vista grossa para as violações dos direitos humanos, desde que eles cooperem para conter a migração. Além disso, os esforços de Trump para tentar minar o resultado das eleições de 2020 tiveram repercussões claras na região. Graças a Trump, os autoritários latino-americanos sentem que têm carta branca para transgredir regras que não estavam em jogo anteriormente. Um aumento do autoritarismo nos EUA pode ter consequências dramáticas para a América Latina.