AMÉRICA CENTRAL

Guatemala: impasse no Congresso atrasa posse de presidente e leva a denúncias de tentativa de golpe

Demora de mais de cinco horas gerou protestos e instou membros da comunidade internacional a pedirem aos congressistas que empossem Arévalo e sua vice, Karin Herrera

Público protesta do lado de fora do local onde se realiza a cerimônia de posse de Arévalo, na Guatemala - Martin Bernetti/AFP

O Congresso da Guatemala está envolvido em discussões de última hora que levaram a um atraso da posse do social-democrata Bernardo Arévalo como presidente, alvo de manobras judiciais que buscaram invalidar a surpreendente vitória que obteve nas urnas ano passado com a promessa de combater a corrupção.

A demora — que ultrapassou as seis horas — levou a protestos do lado de fora da sede do Legislativo, com denúncias de golpe, e instou membros da comunidade internacional a pressionarem o Congresso para empossar Arévalo e sua vice, Karin Herrera, conforme manda a Constituição. O texto foi assinado por representantes da União Europeia, Organização dos Estados Americanos (OEA), bem como por alguns governos latino-americanos.

"Fazemos um apelo ao Congresso para cumprir seu mandato constitucional de transferir o poder, conforme exigido pela Constituição", indicou um comunicado conjunto das delegações presentes na Cidade da Guatemala para a posse. "O povo guatemalteco expressou sua vontade democrática em eleições justas, livres e transparentes, respaldadas pela comunidade internacional por meio de suas missões de observação eleitoral. Essa vontade deve ser respeitada", continuou a nota.

Samantha Power, que lidera a delegação dos Estados Unidos na posse, comentou na rede social X (anteriormente Twitter) que não há dúvida de que Arévalo "é o presidente da Guatemala. Pedimos a todos que mantenham a calma e ao Congresso guatemalteco que respeite a vontade do povo. O mundo está observando".

Por sua vez, o chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, não descartou sanções contra os congressistas que se opõem à transição de poder. "Diante dessa situação, proporei aos Estados membros da UE a aplicação de medidas restritivas individuais contra os membros do Congresso que impedirem a transferência de poder. A vontade popular expressa nas urnas deve ser respeitada", afirmou em entrevista à imprensa local.

Apesar de a Constituição da Guatemala estabelecer que o Congresso deve empossar o novo presidente até as 16h locais (19h de Brasília), ao final deste prazo, nem mesmo o novo Parlamento estava instalado.

"Os deputados têm a responsabilidade de respeitar a vontade popular expressa nas urnas. Estão tentando violar a democracia com ilegalidades, trivialidades e abusos de poder", escreveu Arévalo nas redes sociais.

Deputados 'independentes'
Arévalo, de 65 anos, deve ser empossado no Teatro Nacional ainda neste domingo, mas a cerimônia atrasou porque o Congresso, controlado por partidos ligados ao presidente em exercício, Alejandro Giammattei, mantém o processo de credenciamento dos deputados eleitos e reeleitos detido.

O Parlamento não conseguiu chegar a um acordo na eleição da nova mesa diretiva, declarando a bancada de Arévalo "independente", em virtude de uma ordem judicial de suspensão do partido Movimento Semente. Sendo assim, os deputados não podem integrar a mesa diretiva nem presidir comissões parlamentares.

A demora levou centenas de apoiadores no lado de fora a romper o bloqueio policial, avançando até o local onde se realizava a cerimônia, com início originalmente marcado para as 18h (no horário de Brasília). Os manifestantes, vários deles indígenas, enfrentaram dezenas de policiais que mantinham cercas nos fundos da sede do Legislativo, no centro histórico da Cidade da Guatemala, erguendo cartazes que diziam "Fora, deputados golpistas!". Segundo a imprensa local, não foi preciso o uso de força ou de gases lacrimogênios para segurar o público.

Denúncia de golpe de Estado
Horas antes de sua posse, Arévalo, filho do primeiro presidente democrático da Guatemala, prometeu que seu governo trabalhará para encerrar "um período tenebroso" de "cooptação corrupta do sistema político".

Arévalo, inesperadamente, avançou para o segundo turno presidencial em junho com a ex-primeira-dama Sandra Torres Casanova, uma candidata conservadora aliada do governo, a quem derrotou confortavelmente com 60% dos votos, graças à sua mensagem anticorrupção. Desde então, ele e seu partido foram alvo de uma ofensiva judicial que ele denunciou como um "golpe de Estado", liderado pela elite política e econômica que tem governado o país por décadas.

O Ministério Público tentou retirar sua imunidade como presidente eleito, desmantelar seu partido progressista e anular as eleições, alegando irregularidades eleitorais. Segundo o órgão, as atas eleitorais utilizadas não foram as originalmente aprovadas pelo Tribunal Supremo Eleitoral.

A investida judicial, baseada em casos "espúrios", segundo Arévalo, foi condenada pela ONU, OEA, União Europeia e Estados Unidos, que anunciaram sanções contra centenas de promotores, juízes e deputados por "corrupção" e por "minar a democracia".

Arévalo poderá governar?
O futuro presidente da Guatemala reconhece que enfrentará enormes desafios, pois as "elites político-criminosas, pelo menos por um tempo, continuarão arraigadas" nos poderes do Estado.

Segundo ele, nesta semana, pedirá a renúncia da procuradora-geral Consuelo Porras, líder da ofensiva judicial. Analistas não descartam, porém, que o Ministério Público continue a perseguição e insista em pedir ao Congresso que retire sua imunidade presidencial.

Arévalo terá de lidar com um Congresso onde mais de uma centena dos 160 parlamentares pertencem a partidos políticos tradicionais que podem fazer mais do que apenas obstruir sua agenda de "mudanças".

— Estará sob cerco permanente. Seu maior desafio é atender ao desejo do povo: não ser governado pelo pacto de mafiosos. Ele precisa desmantelá-lo; caso contrário, não poderá governar — disse o analista Manfredo Marroquín à AFP.

A Guatemala que Arévalo herda ocupa o 30º lugar entre 180 países no ranking de corrupção da Transparência Internacional e tem 60% de seus 17,8 milhões de habitantes vivendo na pobreza, um dos índices mais altos da América Latina.

Filho de Juan José Arévalo (presidente de 1945-1951), defensor de importantes reformas sociais no país, nasceu em Montevidéu, Uruguai. Na infância, morou na Venezuela, no México e no Chile, no exílio de seu pai após o golpe orquestrado pelos Estados Unidos em 1954 contra o progressista Jacobo Árbenz.

Arévalo é poliglota e amante do xadrez, pai de três filhas e casado com a médica Lucrecia Peinado, que, por sua vez, tem três filhos.