Na esquina da Bahia com Pernambuco, "Moraes é Frevo"
Com produção musical de Pupillo, em parceria com Davi Moraes, novo disco da Orquestra Frevo do Mundo traz um time de peso interpretando canções de Moraes Moreira, em arranjos de maestros pernambucanos
Em 1975, Moraes Moreira subiu no trio elétrico de Dodô e Osmar e cantou. Ali, naquele momento, se iniciava uma revolução. Até então apenas com aparato instrumental, era a primeira vez que alguém cantava num trio. Moraes trouxe “na sua sacola” a verve genuína do frevo, que foi assimilado pelo Carnaval da Bahia e foi estopim para o fenômeno cultural que explodiria anos depois.
Moraes, baiano de Ituaçu, notabilizou-se, entre outras coisas, por ser um exímio compositor de frevos, inclusive como uma forma de exaltar seu amor por Pernambuco. Sua incursão pelo gênero também ajudou a romper fronteiras geográficas e geracionais, eletrificando o frevo, com o auxílio da guitarra baiana – invenção de Dodô e Osmar – pelas mãos de Armandinho, dando um novo sotaque para o estilo nascido em Pernambuco e popularizando-o em todo o Brasil.
“Moraes é Frevo”
Quarenta e nove anos depois, os frevos de Moraes – falecido em abril de 2020 – continuam ecoando por aí e fervendo a massa carnavalesca. E um recorte glorioso desse repertório ganhou novas versões, no excelente álbum “Moraes é Frevo”, lançado nas plataformas digitais no último dia 19.
O disco é um projeto da Orquestra Frevo do Mundo (capitaneada pelo baterista e produtor musical Pupillo), junto com Davi Moraes (músico/guitarrista e filho de Moraes Moreira), reunindo, em 10 faixas, nomes da música contemporânea brasileira como Lenine, Céu, Criolo, Otto, Maria Rita, Moreno Veloso, Luiz Caldas, Uana, Agnes Nunes, interpretando as canções de Moraes.
Além disso, as ganharam arranjos de sopro criados por quatro maestros pernambucanos, de diferentes gerações: Duda, Spok, Nilsinho Amarante e Henrique Albino.
Faixas e intérpretes
A ideia de “Moraes é Frevo” surgiu a partir de conversas entre Pupillo e Davi Moraes, colegas da banda de Marisa Monte, durante a turnê da cantora.
“A ideia da Orquestra Frevo do Mundo é justamente repaginar, propor uma nova abordagem em cima do estilo (...) e Moraes é o cara que melhor sintetiza isso, por conta do trabalho que ele desenvolveu com o trio elétrico… a Bahia ajudou a repaginar o frevo”, diz Pupillo, em entrevista à Folha de Pernambuco.
“Ele [Moraes Moreira] contou [em suas músicas] muita coisa da história de Pernambuco, da história da Bahia, da invenção do trio elétrico… se fizer um apanhado das letras, você tem um livro contando essa história toda. Então, ele é um grande cronista do Carnaval e também com um lado romântico, com um lado muito de festa, de alegria, tudo isso”, conta Davi Moraes.
Em “Moraes é Frevo” – título também de uma música de Maestro Spok, em homenagem ao artista –, figuram canções clássicas da carreira de Moraes. Bela homenagem do baiano ao estado nascedouro do frevo, “Pernambuco Meu” – interpretada por Lenine – é uma parceria dele com o poeta Paulo Leminski e traz uma linda brincadeira com as sílabas que formam o nome Recife (“Um frevo em ré/ Pra deixar você fora de si/ Não tem/ Frevo de fé/ Como lá, feito lá em Recife”).
“Festa do Interior”, das mais emblemáticas do repertório de Moraes – famosíssima na voz de Gal Costa e pelos arranjos de Linconl Olivetti –, ganhou interpretação de Maria Rita. Já Otto dá voz a “Pombo Correio”, primeira música de Dodô e Osmar (“Double Morse”) que Moraes colocou letra. No disco, ela ganhou arranjos de sopro de Maestro Duda, Patrimônio Vivo de Pernambuco.
Outras canções, que não foram compostas exatamente como frevos, também ganharam versões no gênero. “Na minha cabeça, era justamente para mostrar que em qualquer composição de Moraes também tem frevo, independente do estilo e roupagem que ela ganhou na discografia dele (...) pra mostrar que mesmo quando ele ia para outros estilos, ele não conseguia se livrar do frevo”, destaca Pupillo.
Dessa lavra, está “Preta Pretinha”, que tem arranjos de Maestro Spok e uma interpretação marcante de Criolo, cuja voz impressiona pela semelhança com a de Moraes. O paulista – filho de pais nordestinos – dá um recado ao final da faixa: “O novo GPS contemporâneo da música brasileira, o frevo/ se você não sabe, fique sabendo”. Uma das melhores do disco, ela ficou a cara do carnaval de rua de Recife e Olinda.
“Eu sou o Carnaval”, de Moraes e Antonio Risério, originalmente um ijexá, também ganhou ares de frevo na voz da jovem cantora Uana. “Sintonia”, um bolero romântico oitentista, hit de Moraes, ganhou vestimenta de frevo lírico e é interpretada por Céu, com a participação comovente do coral feminino do Bloco da Saudade. É de chorar de emoção quando as coristas entram em cena!
O disco ainda conta com “Coisa Acesa”, de Moraes Moreira e Fausto Nilo, na voz suave e sotaque paraibano de Agnes Nunes e com o sintetizador de Noé Ribeiro, sobrinho de Davi Moraes/neto de Moraes Moreira, que alude ao Minimoog executado por Robson Jorge em sua versão original, em 1982, no álbum homônimo.
Moreno Veloso se junta a Davi Moraes para cantarem juntos “Todo mundo quer”, composição de Moraes que exalta a liberdade carnavalesca. Outro baiano, considerado o “pai da axé music”, Luiz Caldas canta “Vassourinha Elétrica”, e nela também toca guitarra – Caldas pertence à linhagem de músicos baianos que fizeram do instrumento uma de suas formas de expressão carnavalesca.
A letra da música fala bem da influência do frevo na música carnavalesca baiana, e vice-versa: “E o frevo que é pernambucano/ Sofreu ao chegar na Bahia/ Um toque, um sotaque baiano/ Pintou uma nova energia”.
E é “Guitarra Baiana” – segunda faixa do primeiro álbum solo de Moraes Moreira, de 1975 – que encerra “Moraes é Frevo”, com a voz da gravação original do artista resgatada e acompanhada pela guitarra do filho Davi e pela marcação do surdo de Pupillo.
Produção e arranjos
Para fazer as músicas de “Moraes é Frevo”, juntaram-se Pupillo (bateria), Davi Moraes (guitarra) e Kassin (baixo) nas bases. Davi foi figura crucial nessa formação, uma vez que vem de uma escola “consanguínea” da guitarra característica da Bahia (apesar de ter nascido no Rio de Janeiro).
“A intenção era justamente a gente juntar os metais, os sopros à guitarra de Davi, que é herdeiro dessa escola carnavalesca que tem o trio elétrico como a grande referência do carnaval baiano. Ele é um cara que tem um entendimento forte do frevo também”, exalta Pupillo.
Os arranjos de sopro ficaram por conta de quatro maestros pernambucanos: Maestro Duda, Spok, Nilsinho Amarante e Henrique Albino. “Era fundamental pra gente juntar diferentes gerações para mostrar que o frevo vive um processo de evolução natural. Os próprios maestros do frevo buscam naturalmente essa evolução”, destaca Pupillo. “São grandes mestres da música, além de maestros, são mestres da nossa música, de um nível absurdo”, complementa Davi.
“O que ficou claro pra mim foi uma bela constatação, que existia uma relação de amor entre Moraes e Pernambuco. Existe uma relação genuína ali, uma coisa muito forte e que não à toa deu no que deu em relação ao carnaval da Bahia”, resume Pupillo sobre a emoção de lidar com a obra de Moraes. “Essa relação do meu pai com o Pernambuco sendo ressaltada de uma forma muito clara nesse disco”, diz Davi.