ARGENTINA

Milei enfrenta primeira greve geral, com economia em crise e negociações travadas no Congresso

Paralisação foi convocada pela CGT, ligada ao peronismo, e acontece em momento crucial para o presidente; inflação fechou 2023 em 211,4%, uma das maiores do mundo

Manifestantes fazem protesto contra 'decretaço' anunciado pelo governo de Javier Milei - Luis Robayo / AFP

Com um índice de popularidade ainda alto segundo a maioria das pesquisas que circularam nas últimas semanas — entre 52% e 61% — o presidente da Argentina, Javier Milei, enfrentará nesta quarta-feira (24) a primeira greve geral convocada pela principal união sindical do país, a Central Geral de Trabalhadores (CGT), que rechaça tanto as medidas incluídas no Decreto de Necessidade e Urgência (o DNU), assinado pelo chefe de Estado em dezembro, como as reformas previstas na chamada Lei Ônibus, em discussão no Congresso. Com menos de dois meses de gestão, Milei vive momentos decisivos para o futuro de seu governo.

A paralisação organizada pela CGT — sindicato historicamente vinculado ao peronismo — ocorre em momento em que o Executivo está mergulhado em negociações complicadas com possíveis aliados no Legislativo para tentar aprovar a Lei Ônibus até 15 de fevereiro, quando terminam as sessões extraordinárias convocadas pela Casa Rosada — já prorrogadas uma vez.

O megaprojeto de lei prevê reformas profundas em matéria econômica, de funcionamento do Estado, Código Civil, privatização de empresas, impostos, política de segurança, cálculo de aposentadorias, Judiciário, organismos estatais, entre muitos outras.

Enquanto o DNU, que modificou mais de 300 regulações vigentes no país, enfrenta recursos judiciais adversos que, em alguns casos, conseguiram suspender a implementação de medidas por decisão de juízes locais, a Lei Ônibus provocou uma disputa política ainda com final aberto. O DNU presidencial, que para ser derrubado precisa ser rejeitado pelo Congresso, provavelmente terminará em mãos da Corte Suprema de Justiça, apontam analistas. Já a Lei Ônibus tem um trâmite diferente: ela só entrará em vigência se obtiver sinal verde do Congresso, onde setores do peronismo, a totalidade do kirchnerismo e a esquerda já avisaram que votarão contra.

O partido de Milei, A Liberdade Avança, tem uma bancada de apenas 40 deputados de um total de 252. No Senado, os libertários de ultradireita têm 8 representantes, de um total de 72 senadores. O chefe de Estado tem, portanto, a necessidade de negociar com a agora chamada oposição “dialoguista”, integrada por alguns peronistas, a aliança de centro-direita Juntos pela Mudança (que continua lidando com fortes tensões internas), a Coalizão Cívica e a União Cívica Radical (UCR). Dentro dessa oposição, a Juntos pela Mudança é a mais pró-Milei e faz poucas ressalvas ao projeto de Lei Ônibus. Já a UCR e outros partidos estão mostrando uma maior resistência, o que obrigou o presidente a rever o texto e enviar uma nova versão ao Parlamento na segunda-feira.
 

Milei passou de dizer que seu projeto de lei era a “tudo ou nada” a fazer algumas concessões — ainda consideradas insuficientes.

— A aprovação da lei dependerá da capacidade de negociação do governo. Milei cedeu em temas como o sistema de aposentadorias, tirou a companhia petrolífera YPF da lista das privatizações, mexeu na política de hidrocarbonetos e reduziu o período em que solicita ao Parlamento amplos poderes para governar (passou de dois anos para um— explica Ignácio Labaqui, professor da Universidade Católica Argentina e consultor.

Sensação de governo inviável
Para ele, a deterioração da situação econômica é um fator crucial que, somado a uma eventual derrota no Parlamento e problemas na Justiça com o DNU, poderia instalar rapidamente a sensação de inviabilidade do governo. Nesse contexto, o mais provável, disse Labaqui, é que, sob pressão, Milei use a greve da CGT para alimentar a narrativa de que não o deixam governar.

Os sindicatos argentinos não têm uma boa imagem perante a sociedade — que, em muitos casos, repudia seu modus operandi e os escândalos de corrupção — e o presidente argentino é mestre em usar as redes sociais para atacar seus adversários. Há um elemento central no discurso de Milei e seus ministros que os sindicatos têm dificuldade em rebater: a pergunta sobre por que nunca organizaram uma greve contra o governo do peronista Alberto Fernández, que elevou o índice de pobreza a mais de 40% e não conseguiu conter a inflação, e agora desafiam um governo que assumiu há menos de dois meses.

Milei fez apostas ousadas e corre contra o tempo. O presidente sabe que, com uma economia em ruínas e uma das taxas de inflação mais altas do mundo (211% em 2023), a tolerância da sociedade poderá evaporar-se rapidamente se as condições de vida das pessoas não começarem a melhorar nos próximos meses. Os quase 56% dos votos obtidos nas urnas são o principal capital político do chefe de Estado, e se a crise econômica não começar a ser contornada, os argentinos, mesmo sabendo que Milei recebeu uma herança pesada, poderão começar a duvidar sobre as chances que o presidente tem de dar certo.

— O resultado da greve terá impacto político e poderá influenciar os congressistas nas discussões sobre a Lei Ônibus. Hoje, a oposição propensa ao diálogo está evitando desgastar um presidente popular, mas isso poderia mudar — afirma Juan Tokatlián, vice-reitor da Universidade Di Tella.

Para ele, “Milei tem pouca capacidade de mobilizar as ruas porque, no fundo, a maioria dos argentinos não entende o que está sendo discutido. O que as pessoas, sim, entendem é a inflação e a perda de poder aquisitivo”.

— Estamos vendo um jogo político que ninguém sabe como vai terminar. Acho que Milei deveria ter apostado, primeiro, num plano de estabilização econômica, aproveitando o respaldo social que tem — acrescenta Tokatlián.

As negociações no Congresso estão emperradas, entre outras razões, pela negativa do presidente de retirar do projeto a manutenção — e em alguns casos aumento — das retenções, os tributos cobrados aos exportadores de grãos. Depois da seca de 2023 e com a expectativa de uma safra recorde em 2024, a Casa Rosada não abre mão dos recursos que representa um imposto que castiga o campo argentino.

Milei, que durante a campanha prometeu baixar impostos, está sendo obrigado a mantê-los e, até mesmo, elevá-los, em alguns casos. Essa posição é rejeitada por vários governadores, que controlam deputados e senadores. Ou seja, as necessidades fiscais de um governo que diz diariamente que no hay plata (não tem dinheiro, em tradução livre) complicaram negociações que são fundamentais para que o projeto de governo de Milei possa sair do papel.

Pressão em governadores
A greve desta quarta não é o principal problema do líder da ultradireita argentina. Mas é mais uma sinalização negativa, para um governo que tem pouco tempo para mostrar resultados e evitar a perda de apoio. No desespero, a Casa Rosada avisou que se os governadores não apoiarem o projeto, serão revisadas as transferências de recursos para os governos provinciais.

— Se o projeto não for aprovado, um cenário que estamos analisando, o que vai acontecer é que continuaremos com o ajuste das contas públicas, e isso vai incluir uma análise de todas as remessas que o governo nacional transfere para as províncias — disse o porta-voz do governo, Manuel Adorni, expondo as técnicas de negociação de um presidente pragmático e calculador.

Para Adorni, os que organizaram a greve e os que se opõem ao projeto de lei do governo “estão do lado errado da História”.