Tragédia dos Andes: bilhete e cavalgada de 120 km "salvaram" sobreviventes de acidente aéreo
Passageiros que escaparam à colisão de aeronave na cordilheira tiveram de comer partes dos corpos dos companheiros mortos à espera de socorro
Escrito em papel e caneta, um bilhete foi a salvação para 16 passageiros que escaparam da queda de um avião nos Andes, em outubro de 1972, e conseguiram ser resgatados 72 dias depois.
A mensagem, lançada até o outro lado de um riacho, onde estava um condutor de mulas, foi o primeiro contato de sobreviventes com um ser humano desde a tragédia — e só chegou às autoridades porque dois passageiros se arriscaram pela cordilheira à procura de socorro e o trabalhador, mais tarde identificado como Sergio Catalán, percorreu 120 quilômetros a cavalo para entregá-la.
"Venho de um avião que caiu nas montanhas. Eu sou uruguaio. Estamos caminhando há 10 dias. Eu tenho um amigo ferido lá em cima. 14 pessoas ficaram feridas no avião. Temos que sair daqui rápido e não sabemos como. Não temos comida. Estamos fracos. Quando vão nos buscar lá em cima? Por favor, não podemos nem andar. Onde estamos?", dizia o bilhete escrito por Fernando Parrado, um dos sobreviventes.
Os passageiros estavam "perdidos" nas montanhas de neve, tendo de comer partes dos corpos dos companheiros mortos e superar avalanches, quando parte do grupo decidiu se separar e buscar ajuda.
Como o bilhete chegou a Catalán
O avião fretado partira de Montevidéu, no Uruguai, rumo a Santiago, no Chile, levando integrantes do time de rúgbi Old Christians Club, amigos, parentes e cinco tripulantes. Entre os 16 sobreviventes, Roberto Canessa e Fernando Parrado decidiram avançar pelos Andes durante dez dias e noites até chegarem a uma paisagem que não estava congelada.
Em entrevista de 2020, ao programa Informal Breakfasts, Canessa contou ter visto, pela primeira vez em muito tempo, grama, lagarto, vacas. No entanto, não via seres humanos.
— Você [fica pensando se] realmente alcançou a civilização? Estávamos sentindo falta do homem — destacou ele. Canessa e Parrado, enfim, avistaram um homem, um chileno que trabalhava como condutor de mulas: Sergio Catalán.
O chileno afirmou que, de primeiro momento, pensou que os dois uruguaios, à sua vista do outro lado de um riacho, estavam "apenas passeando".
— Primeiro, quando eu os vi, estava reunindo o gado, mas pensei que eram pessoas que estavam apenas passeando. Mais tarde, quando os vi mais perto, quase a ponto de gritarem comigo, eles fizeram [sinais] com as mãos, mas não entendi o que diziam — destacou o condutor de mulas à Televisión de Chile, em 1972, reproduzida no canal do YouTube Contacto.
A força da corrente no riacho impedia a travessia. Também dificultava que ambos os lados se ouvissem. Catalán buscou papel e lápis com um amigo e entregou ao Parrado, que relatou o drama dos sobreviventes.
Catalán viajou 120 quilômetros para entregar o bilhete e alertar os serviços de resgate. No dia seguinte, helicópteros localizaram os 14 sobreviventes que estavam nas montanhas.
Hoje, 14 dos 16 sobreviventes ainda estão vivos. A maior parte dos passageiros estava na casa dos 20 anos e hoje, 51 anos depois da tragédia, passaram dos 70.
Resgatados da montanha, os sobreviventes retomaram a vida, formaram-se na faculdade, constituíram família. Alguns deles passaram a falar sobre o acidente como porta-vozes do Milagre dos Andes.
Os relatos subsidiaram a elaboração de dezenas de livros e filmes sobre o caso, a exemplo de "Sociedade da Neve", do cineasta espanhol J.A. Bayona. Indicada ao Globo de Ouro na categoria de Melhor Filme Estrangeiro, a produção estreou este mês na Netflix.
Veja o destino de alguns dos sobreviventes da tragédia:
Dois dos sobreviventes — José Luis Iniciarte e Javier Methol — faleceram anos após o resgate nos Andes. Methol morreu em junho de 2015. Ele era casado com Liliana Methol, que também viajava com o grupo e não resistiu a uma avalanche no local. Já Iniciarte morreu em julho do ano passado. Ao longo da vida, ele se tornara um dos maiores produtores de leite do Uruguai.
Fernando Parrado perdeu a mãe, Eugenia, e a irmã, Suzy, na tragédia dos Andes. Depois do resgate, ele voltou a Montevidéu e tornou-se um dos rostos mais conhecidos do grupo. Trilhou carreira no automobilismo, com atuação na equipe Alfa Romeo por torneios da Europa, até se lançar como apresentador e produtor de televisão.
Roberto Canessa, além de retomar carreira no rúgbi (e chegar até à seleção nacional do esporte), formou-se em Medicina. Especializou-se em cardiologia infantil e passou a lecionar em universidades. Em 1994, concorreu nas eleições presidenciais pelo Partido Azul, mas saiu derrotado. É um dos rostos mais conhecidos entre os sobreviventes.
Carlos Páez Rodríguez atuou como técnico agrônomo e publicitário. Ao longo das últimas décadas, relatou a luta contra o vício em drogas e álcool.
Antonio Vizintin virou palestrante e empresário no segmento da indústria química. Roberto François, o Bobby, manteve um rancho, no qual atua com agropecuária.
Primos de Eduardo, Adolfo Strauch hoje é fazendeiro e cria gado e Daniel Fernández, formado em agronomia, virou empresário em ramos como tecnologia.
Gustavo Zerbino também chegou a ser escalado para a seleção nacional de rúgbi e virou cartola do esporte, à frente da Unión de Rugby del Uruguay. Zerbino atuou, ainda, no ramo farmacêutico e tabalhou como presidente de uma empresa química.
Alfredo Delgado virou advogado. Já Roy Harley, engenheiro industrial. Eduardo Strauch, por sua vez, enveredou pela arquitetura e pelas artes plásticas.
Álvaro Mangino chegou a morar no Brasil durante anos. De volta ao país natal, tornou-se conselheiro do time de rúgbi Old Christians Club. Ramón Sabella foi viver no Paraguai e passou a atuar como empresário e palestrante.
José Pedro Algorta formou-se em Economia e se mudou para a Argentina antes de abrir uma consultoria e voltar para o país natal.
O que restou no local no acidente
O Vale das Lágrimas, cenário do acidente e onde os sobreviventes permaneceram por semanas, ainda fascina turistas de todo o mundo. Mesmo 51 anos mais tarde, aventureiros se arriscam a explorar a Cordilheira dos Andes, tentando replicar o mesmo caminho que Canessa e Parrado trilharam até encontrar ajuda. Em expedições ao longo de todos esses anos, amigos, familiares e turistas conseguiram trazer de volta alguns pertences dos passageiros, mas ainda há muitos itens enterrados no local.
Aqueles que conseguiram ou menos tentaram percorrer os mesmos 38 km concordam: sobreviver demandou um esforço surpreendente, sobretudo considerando que Canessa e Parrado tiveram de enfrentar o frio e a fome, além de lidar com a decisão de devorar os mortos para não morrer de inanição.
Por conta do percurso desafiador e das condições atmosféricas extremas dos Andes, muitos objetos pessoais dos passageiros, assim como peças da aeronave, permanecem no local e se tornaram um verdadeiro santuário para as vítimas.
Demais itens, recolhidos pelas Forças Armadas ou em expedições posteriores de amigos e familiares dos passageiros, foram destinados ao Museu dos Andes, no Uruguai.
Ao jornal argentino Clarín, o guia mexicano Ricardo Peña disse ter encontrado, em sua primeira visita ao Vale, em 2005, o blazer de Eduardo Strauch, um dos sobreviventes. Também descobriu uma bolsa enterrada na neve com US$ 100 e um passaporte.
Mas a maior parte da fuselagem da aeronave, que serviu de abrigo aos sobreviventes durante 72 dias, ficou enterrada no gelo.
Segundo o jornal, no local do acidente, as equipes de resgate encontraram um trem de pouso com duas rodas (que segue no mesmo lugar), parte dos assentos, um apoio de braço, as capas dos assentos com que os sobreviventes se cobriram e algumas roupas, como calças, meias e camisas.
O suporte onde ficava localizada a antena Collins, que captava sinais de rádio chilenos, também permanece no mesmo lugar. Subindo a montanha, restaram alguns pedaços da fuselagem e do trem de pouso dianteiro, fora parte das janelas e da hélice.