Herança de Zagallo: deixar valores diferentes para cada filho é juridicamente permitido? Entenda
Herdeiros divergem sobre destinação do patrimônio do craque, morto no último dia 5
O testamento de Zagallo causou uma forte divergência na família do ídolo brasileiro, morto no último dia 5 de janeiro, aos 92 anos. O Velho Lobo deixou 50% de seu patrimônio ao filho mais novo, Mário Cesar, com o restante dividido de forma igual entre ele e os outros três herdeiros: Paulo Jorge, Maria Emília e Maria Cristina. Os dois lados se movimentaram com acusações — o trio afirmou que vai procurar a Justiça.
O Globo procurou especialistas para entender se esse modelo de divisão estaria correto juridicamente.
Em consenso, os três advogados ouvidos confirmaram a legalidade da divisão. Mas explicaram outros meandros do futuro processo judicial, que promete ser longo.
Pablo Arruda, especialista em planejamento sucessório há 20 anos, do escritório SMGA advogados, explica que todo processo de herança permite que o cidadão destine até 50% de seu patrimônio para pessoas ou partes que não seus herdeiros. Mas os outros 50% têm destino certo.
— Tendo filhos, que a gente chama de herdeiros necessários, ele não pode dispor de 100% do patrimônio para ninguém. Filho, instituição de caridade, ninguém. Pode dispor de metade do patrimônio, deixar 50% para alguém, que pode ser um filho ou não, e os outros 50% obrigatoriamente vão ser divididos entre os herdeiros necessários. Em regra, os filhos e cônjuge, se houver, como não é o caso dele.
Além dos 50% de patrimônio, Mário César também receberia outros 12,5% da herança, fruto da divisão igualitária dos outros 50% entre os irmãos. Arruda explica essa conta:
— Do ponto de visto jurídico, o texto do testamento dele está correto. Ele deixou 50% para o filho mais novo e os outros 50% obrigatoriamente estão divididos pelos quatro, inclusive o mais novo. Essa disponibilidade (porcentagem) que ele deixa, que chamamos de disponível, não infere no direito dos herdeiros necessários. Isso leva à conta dos 62,5%. Não tem ilegalidade — complementa.
Filhos alegam doações e movimentação de patrimônio
Em nota, os advogados Anelisa Teixeira e Daniel Blanck, que representam o trio de filhos mais velhos, alegam que o trio relata, desde 2016, "consideráveis dificuldades para estabelecer qualquer tipo de comunicação e contato com seu pai". No testamento, Zagallo se diz "profundamente triste e magoado" com os três herdeiros.
A defesa do trio também fala em "expressivas doações" a Mário César, movimentação patrimonial milionária e saques recorrentes.
"Conforme relatos dos clientes, Mário César, filho mais novo, restringiu o acesso ao pai, induzindo Zagallo a acreditar que teria sido abandonado. Os herdeiros observaram movimentação patrimonial milionária, incluindo expressivas doações destinadas a Mário César. Adicionalmente, foram identificados saques recorrentes em contas bancárias de Zagallo, envolvendo quantias incompatíveis com seu padrão de vida enquanto idoso", diz a nota dos advogados. Mario César, que conversou com jornal Estadão, negou tirar qualquer proveito financeiro do pai.
— Essas alegações precisarão ser demonstradas em juízo e avaliadas pelo juiz responsável pelo caso, para que seja feita uma análise imparcial entre o que foi alegado e o que Zagallo expressou em seu testamento — explica Marcos Filipe Araújo, advogado cível do Peixoto & Cury Advogados.
Eduardo Maciel, especialista em Direito societário e planejamento sucessório do MFBD Advogados, explica que, caso comprovadas doações e movimentações a favor de Mário César, como alegam os irmãos, pode haver um novo cálculo na divisão de patrimônio:
— Caso seja configurado que essas movimentações e doações favoreceram o filho mais novo, o fato pode trazer o aumento do patrimônio total a ser dividido, de forma que elas (doações e movimentações) podem vir a ser consideradas como antecipação da parte a ser recebida pelo filho mais novo. Caso seja provado esse favorecimento, o filho mais novo pode receber um patrimônio menor.
Arruda explica as doações precisam ser comunicadas no processo:
— Os valores que ele eventualmente doou em vida, se doou, têm que ser comunicados no processo e entrar na conta como um adiantamento daquele direito que o testamento está dispondo.
Acusações de afastamento
Ao Estadão, Mário César afirmou que o pai quis cortar relações com os irmãos após uma briga:
— Eles estão querendo aparecer após sete anos. Fui eu quem cuidou do meu pai esse tempo todo. Tem um documento assinado pelo meu pai dizendo que não queria a visita deles nas internações.
Para os especialistas, há possibilidade de as alegações de afastamento mexerem com o processo, o que terá de ser provado pela defesa do trio:
— Teria que haver uma clara demonstração de coação que maculasse a declaração de vontade da divisão desproporcional, o que eu acredito ser difícil, já que o falecimento já aconteceu. Mas, caso provada essa mácula, poderia ser requerida a invalidade do documento e assim retornar à divisão igualitária a todos os herdeiros sobre todo o patrimônio, regra geral quando não há declaração de uma vontade diferente — diz Maciel, que prevê que o processo pode levar de cinco a sete anos, pelo menos.
Arruda vai pelo mesmo caminho, e diz que os herdeiros mais velhos teriam que provar que o pai agiu em erro na demonstração dessa vontade caso queiram colocar em dúvida o documento sob as alegações de afastamento:
— A razão pela qual essa vontade dele foi colocada pode levar uma discussão sobre a validade do testamento.