UE pede auditoria na agência da ONU em Gaza; funcionários envolvidos foram rastreados por celulares
Bloco é um dos maiores doadores do organismo e tem tomado decisões de maneira cautelosa desde o anúncio da demissão de 12 funcionários por suposta participação no 7 de outubro
A Comissão Europeia, o braço Executivo da União Europeia (UE), defendeu nesta segunda-feira (29) a realização de uma auditoria na Agência da ONU para os Refugiados Palestinos (UNRWA, na sigla em inglês), após as acusações israelenses sobre a suposta participação de alguns funcionários nos ataques terrorista de 7 de outubro — um dossiê, revisado pelo New York Times e o Wall Street Journal, afirma que pelo menos seis agentes teriam sido identificados pelo rastreamento dos seus celulares. Desde sábado, pelo menos 12 países seguiram os EUA na decisão de suspender temporariamente o financiamento à agência, que presta ajuda vital a refugiados palestinos.
Em um comunicado, a Comissão afirma esperar que a UNRWA aceite "uma auditoria da agência que seja realizada por analistas externos independentes designados pela UE", conduzida em conjunto com as investigações da ONU sobre as acusações israelenses, de acordo com o jornal Times of Israel. A União Europeia é um dos maiores doadores da agência. Em 2022, segundo um documento da própria agência humanitária, o bloco ficou em terceiro lugar entre os principais financiadores, atrás apenas dos EUA e da Alemanha.
No sábado, em meio à onda de suspensões temporárias do financiamento à UNRWA, o chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, foi bastante cauteloso, alegando que esperava "transparência total" e uma "ação imediata" antes de tomar uma decisão.
As acusações
A UNRWA enfrenta uma grande controvérsia desde que Israel denunciou que vários funcionários da agência participaram do ataque terrorista executado pelo Hamas, que deixou 1,2 mil mortos e sequestrou 250 pessoas, segundo as autoridades israelenses. A acusação levou o chefe da agência, Philippe Lazzarini, a anunciar a demissão de "vários" funcionários. Segundo a ONU, nove foram imediatamente identificados e demitidos, um foi confirmado como morto, e dois outros ainda estavam tendo as identidades esclarecidas.
Um dossiê fornecido ao governo americano, a qual o New York Times e o Wall Street Journal tiveram acesso, e que que detalha as reivindicações de Israel, lista os nomes e empregos dos funcionários da UNRWA e as acusações contra eles. Entre os que foram denunciados, sete seriam professores em escolas administradas pela agência, outros dois seriam funcionários dessas escolas, mas em outras funções, e três foram descritos como balconista, assistente social e gerente de almoxarifado.
O documento diz que oficiais da inteligência israelense descobriram os movimentos de seis dos homens dentro do país em 7 de outubro com base em seus telefones; outros foram monitorizados enquanto faziam chamadas telefónicas dentro de Gaza, durante as quais, dizem os israelenses, discutiram o seu envolvimento no ataque do Hamas. Três outros receberam mensagens de texto ordenando que se apresentassem nos pontos de reunião no dia do ataque, e um foi instruído a trazer granadas de propulsão armazenadas em sua casa, de acordo com o dossiê.
Dez funcionários foram descritos como membros do Hamas, grupo que controla Gaza desde 2007, enquanto um outro seria afiliado à Jihad Islâmica, cuja atuação se estende por Gaza, mas também na Cisjordânia. Segundo o Wall Street Journal, que também teria revisado o dossiê, cerca de 10% dos funcionários da agência teriam ligações com esses grupos. A UNRWA emprega 13 mil pessoas em Gaza, sendo a maioria palestinos.
As denúncias mais detalhadas no dossiê pelo New York Times diziam respeito a um conselheiro escolar de Khan Younis, cidade no sul de Gaza, que é acusado de trabalhar com o seu filho para sequestrar uma mulher de Israel.
Um assistente social de Nuseirat, no centro de Gaza, é acusado de ajudar a trazer o corpo de um soldado israelense morto para Gaza, bem como de distribuir munições e coordenar veículos no dia do ataque. Outro teria sido descrito como um dos participantes no massacre a um kibutz, onde 97 pessoas morreram.
Em um comunicado, o chefe da agência local disse que qualquer funcionário envolvido em atos de terrorismo seria “responsabilizado, inclusive através de processo criminal”. António Guterres, secretário-geral da ONU, afirmou estar "horrorizado com a notícia" e disse ter pedido a Lazzarini que investigasse o assunto "rapidamente", segundo a BBC, na sexta-feira.
Onda de suspensão
No mesmo dia do anúncio da demissão, os Estados Unidos, principal financiador da UNRWA, comunicaram a suspensão do financiamento à agência. O país enviou várias centenas de milhões de dólares no ano passado e US$ 340 milhões em 2022.
Desde então, pelo menos 12 países — Austrália, Reino Unido, Canadá, Itália, Suíça, Holanda, Alemanha, Finlândia, Japão, Romênia, Estônia e Áustria — seguiram a decisão de Washington. A Irlanda e a Noruega, porém, em uma notável demonstração de apoio à UNRWA, afirmaram não terem planos para suspender o apoio.
O ministro das Relações Exteriores irlandês, Micheál Martin, escreveu nas redes sociais, no sábado, que os funcionários da agência trabalharam para “fornecer assistência para salvar vidas”. Já a Noruega, em um comunicado divulgado nesta segunda-feira, afirmou que "embora partilhe a preocupação sobre as alegações muito graves", apelou aos doadores "para que considerem as consequências a longo prazo dos cortes" à UNRWA.
Lazzarini, em uma publicação no X (antigo Twitter) no domingo, reforçou que a agência está "chocada" com as acusações contra os funcionários e que está realizando "reformas estruturais para reforçar a adesão do seu pessoal aos princípios humanitários, incluindo o da neutralidade". Contudo, o chefe da agência local instou que os doadores mantenham as "operações humanitárias vitais", afirmando que a suspensão "resultará na interrupção de todas as nossas atividades dentro de algumas semanas."
O mesmo foi defendido pelo secretário-geral da ONU. "Os supostos atos repugnantes desses funcionários devem ter consequências. Mas as dezenas de milhares de homens e mulheres que trabalham para a UNRWA, muitos deles em algumas das situações mais perigosas para os trabalhadores humanitários, não devem ser penalizados”, afirmou Guterres, observando que "as terríveis necessidades das populações desesperadas que servem devem ser atendidas".
O Hamas tem denunciado o que descreve como "ameaças" israelenses contra a UNRWA e pediu à ONU e a outras organizações internacionais que não "cedam às ameaças e chantagens". O grupo também acusou Israel de querer "cortar os fundos e privar" os palestinos de qualquer ajuda.
Catástrofe humanitária
A suspensão de potencialmente centenas de milhões de dólares em financiamento por parte de vários países ocidentais à UNRWA não poderia ter ocorrido no pior momento para os habitantes de Gaza, altamente dependente da ajuda humanitária de organizações internacionais como a UNRWA.
Israel mantém um bloqueio aéreo, terrestre e marítimo ao território desde 2007, limitando a entrada de alimentos, combustível, medicamentos e pessoas — uma situação que piorou vertiginosamente desde 7 de outubro, depois que o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu declarou um “cerco total” à faixa, em retaliação aos ataques do Hamas contra Israel.
A agência fornece há décadas uma série de serviços sociais ao povo de Gaza, construindo e operando escolas, abrigos e clínicas médicas. A procura e a dependência dos seus serviços aumentaram acentuadamente desde o início da ofensiva de Israel em Gaza, que deixou mais de 26 mil mortos, segundo o Ministério da Saúde do enclave, deslocou mais de 80% dos civis e interrompeu o fornecimento básico de alimentos, água e serviços médicos.
Relação conturbada
O ministro das Relações Exteriores de Israel, Israel Katz, saudou no sábado a decisão dos países em suspender o financiamento e apelou à agência humanitária que interrompa o seu trabalho em Gaza após o término das ações militares do país no enclave.
Em uma publicação no X nesta segunda-feira, o chanceler pediu a renúncia de Lazzarini. "Apoiadores do terrorismo não são bem-vindos aqui", escreveu ao comunicar o cancelamento de uma reunião entre o chefe da agência local e funcionários da pasta.
As relações entre Israel e a agência pioraram depois que a UNRWA culpou os tanques israelenses por dispararem contra um de seus centros para pessoas deslocadas em Khan Younis, no sul de Gaza, na quarta-feira. Pelo menos 13 pessoas morreram e mais de 56 ficaram feridas. O exército israelense é a única força com tanques posicionados em Gaza.
Para críticos, incluindo muitos israelenses, a agência é um obstáculo à resolução do conflito. A sua própria existência, dizem eles, impede os refugiados palestinos de se integrarem em novas comunidades e alimenta os seus sonhos de um dia regressar ao que hoje é Israel – um objetivo que o país diz que nunca permitirá. E em Gaza, argumenta o Estado judeu, a UNRWA caiu sob a influência do Hamas, uma afirmação que a agência rejeita.