Com avanço da fome em Gaza, palestinos comem grama e bebem água poluída para sobreviver
ONU alerta que operação militar israelense tornou região "inabitável"
Palestinos deslocados de suas casas desde o início da guerra entre Israel e o Hamas têm deixado de comer para dar aos filhos a pouca comida disponível no enclave. Escassa na região, a água, quando é encontrado, geralmente está poluída.
Relatos colhidos pela rede americana CNN apontam que adultos caminham horas, sob baixas temperaturas e risco de bombardeios, à procura de alimentos, enquanto as crianças vagam pelas ruas e disputam pedaços de pães de fornadas de dias anteriores. E todos se amontoam quando veem um caminhão com suprimentos e ajuda humanitária.
Antes da guerra, duas em cada três pessoas já dependiam de apoio alimentar, explicou à CNN Arif Husain, economista-chefe do Programa Alimentar Mundial (PAM), já que o enclave passou 17 anos sob bloqueio parcial de Israel e Egito. Mas a guerra deflagrada em 7 de outubro, após o ataque terroristas do Hamas, transformou a região em um lugar "inabitável", onde a população, presa na ofensiva, "morre de fome", alertaram agências da ONU esta semana.
"Os civis de Gaza não fazem parte desse conflito e devem ser protegidos. É uma população que morre de fome, que está à beira do abismo", alertou o diretor do programa de emergências sanitárias da Organização Mundial de Saúde, Michael Rayan.
Hanadi Gamal Saed El Jamara relatou à CNN que os sete filhos, de tão fracos, têm dormido para "distrair" a fome. O grupo pede comida nas ruas de Rafah e cuida do pai, que tem câncer e diabetes.
"Estamos morrendo lentamente" disse El Jamara. "Acho melhor morrer por causa das bombas, pelo menos seremos mártires. Mas agora estamos morrendo de fome e sede".
O fisioterapeuta Mohammed Hamouda contou à CNN que aguardava na fila para buscar água, no campo de refugiados de Jabalya, quando um ataque israelense matou seu colega e outras dezenas de pessoas. Hoje instalado em Rafah, ele conta que a fome atinge principalmente aqueles que ainda estão ao norte do enclave.
"Infelizmente, muitos familiares e amigos ainda estão no norte da Faixa de Gaza, sofrendo muito" destacou Hamouda."Eles comem grama e bebem água poluída".
Metade de Gaza está destruída
A Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) apontou, por sua vez, que "o nível de destruição da operação militar" tornou o território palestino, de quase 2,4 milhões de habitantes, um local "inabitável", onde "50% das estruturas estão danificadas ou destruídas".
O conflito começou em 7 de outubro, com a incursão de comandos islamistas que mataram cerca de 1.140 pessoas, em sua maioria civis, e sequestraram cerca de 250 no sul de Israel, segundo um balanço da AFP a partir de dados oficiais israelenses.
Os bombardeios e operações terrestres em represália lançados por Israel com o objetivo de "aniquilar" o Hamas, no poder em Gaza, deixaram até o momento quase 27.000 mortos, em sua maioria mulheres, crianças e menores, de acordo com o Ministério da Saúde do território palestino.
Israel também impôs um bloqueio rigoroso ao fornecimento de água, medicamentos, alimentos e energia a esse território, de 362km². Pelo menos 150 pessoas morreram nas operações israelenses nas últimas 24 horas, apontou o Ministério da Saúde do Hamas.
O epicentro da ofensiva encontra-se atualmente em Khan Yunis, no sul da Faixa. Disparos de artilharia atingiram o hospital Nasser, onde há milhares de civis refugiados, indicaram testemunhas. O pessoal do hospital Amal também informou de combates próximos.
"Abandonamos o hospital Nasser debaixo de bombas. Não sabíamos para onde ir. Estamos abandonados à nossa sorte", contou uma mulher que fugiu para Rafah, cerca de 20 km ao sul.
Segundo o Exército israelense, as operações em Khan Yunis permitiram eliminar "dezenas de terroristas" e destruir um local de fabricação de armas.
Israel admitiu ontem que havia começado a inundar túneis cavados pelo Hamas em Gaza, um labirinto de galerias que constituem uma armadilha para os soldados israelenses e onde vários reféns estiveram cativos.
Proposta de trégua em três fases
Estados Unidos, Egito e Catar tentam convencer Israel e Hamas de pactuarem uma nova trégua, depois da de uma semana no final de novembro que permitiu a liberação de cem reféns em Gaza em troca de 240 presos palestinos em Israel.
O chefe do Hamas, Ismail Haniyeh, radicado no Catar, irá nesta quarta ou quinta-feira ao Cairo para falar da proposta de trégua feita no fim de semana durante uma reunião em Paris entre o diretor da Inteligência americana, William Burns, e responsáveis egípcios, israelenses e cataris.
Uma fonte do Hamas indicou que o movimento islamista examina uma proposta que possui três fases: a primeira incluiria uma trégua de seis semanas durante a qual Israel libertaria entre 200 e 300 prisioneiros palestinos em troca de 35 a 40 reféns. Além disso, entre 200 e 300 caminhões com ajuda humanitária poderiam entrar todos os dias em Gaza.
O chefe da diplomacia americana, Antony Blinken, voltará ao Oriente Médio nos próximos dias, afirmou um funcionário americano, sem especificar quais países ele visitará.
"Coluna vertebral" da ajuda
O Hamas exige um cessar-fogo total como condição para qualquer acordo. O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, opôs-se ontem a qualquer acordo. "Não retiraremos o Exército da Faixa de Gaza nem liberaremos milhares de terroristas. Nada disso irá acontecer", disse.
Segundo a ONU, 1,7 milhão de habitantes de Gaza fugiram de suas casas desde o início da guerra.
Com o avanço dos combates, a maioria foi para o sul, e mais de 1,3 milhão de deslocados, segundo a ONU, amontoam-se em Rafah, perto da fronteira fechada com o Egito.
Além disso, as operações de ajuda aos civis da Agência da ONU para os refugiados palestinos (UNRWA) estão em risco desde que Israel acusou uma dezena de seus empregados de estarem envolvidos no ataque de 7 de outubro. Após essas acusações, 13 países suspenderam seu financiamento.
O chefe da ONU, António Guterres, assegurou nesta quarta-feira que a UNRWA é "a coluna vertebral" da ajuda a Gaza.