Chefe da Abin de Lula manteve em cargos-chaves servidores suspeitos de ligação com programa espião
Integrantes da Agência Brasileira de Inteligência só foram afastados após decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal
O diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Luiz Fernando Corrêa, manteve em cargos-chaves três servidores suspeitos de terem ligação com o programa espião FirstMile, usado para monitorar desafetos políticos do governo de Jair Bolsonaro entre 2019 e 2021. Esses integrantes do órgão só foram afastados por determinação do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), sob risco de atrapalharem as investigações em andamento.
Reportagem do Globo revelou em março do ano passado que a Abin usava uma ferramenta secreta israelense para vigiar a localização de alvos pré-determinados por meio da conexão dos aparelhos celulares. Após o caso vir à tona, a Polícia Federal (PF) abriu um inquérito e identificou que o sistema espião foi utilizado para monitorar políticos, jornalistas, advogados e adversários de Bolsonaro.
Mesmo com as suspeitas e colaborando com as investigações, Corrêa manteve na agência servidores que tiveram relação com o programa FirstMile. Um deles era Paulo Maurício Fortunato Pinto, que foi nomeado como número 3 da agência em abril do ano passado e esteve à frente do setor de operações da Abin no governo Bolsonaro. A área era responsável por utilizar o programa secreto para realizar vigilâncias.
Embora mantenha a confiança do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Corrêa sai desgastado da crise envolvendo a agência. Causou incômodo entre integrantes do Planalto a postura do diretor-geral, que teria minimizado o impacto dos desdobramentos da crise. Nesta ala, existe a avaliação de que houve uma tentativa de blindar a Abin — manobra que se mostrou malsucedida. A interlocutores, Corrêa chegou a afirmar que “a montanha iria parir um rato”.
Paulo Maurício, homem de confiança de Corrêa, só deixou o posto de número 3 da Abin no governo Lula depois de ter sido afastado em outubro do ano passado por determinação do ministro Alexandre de Moraes, do STF. Na ocasião, o magistrado também determinou o afastamento de Paulo Magno de Melo Rodrigues Alves, diretor do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Segurança das Comunicações (Cepesc) da atual gestão da Abin.
Investigação da PF aponta que Paulo Magno e Paulo Maurício “tinham todo o domínio da aplicação e sabiam da existência de ‘alvos sensíveis’ nos logs do sistema FirstMile”. Segundo a apuração, Paulo Maurício, apontado como o principal responsável pelo uso do programa. também tinha a posse dos logs de acesso, mas “teria se livrado antes de sair”, conforme declarado por Paulo Magno.
Além disso, Paulo Maurício participou de uma reunião que Alessandro Moretti, exonerado nesta terça-feira do posto de número 2 da Abin, promoveu com os investigados, no dia 28 de março do ano passado. Na ocasião, Moretti afirmou, segundo a PF, que a apuração teria “fundo político e iria passar”. Corrêa também estava na reunião, que ocorreu duas semanas após o GLOBO revelar a existência do FirstMile, mas ainda não tinha assumido o comando da Abin.
Neste encontro, segundo a PF, Paulo Maurício apresentou uma “estratégia” da direção-geral para “tentar acalmar a turma”. Meses depois, a Polícia Federal realizou uma operação e apreendeu US$ 171,8 mil na casa dele, então número 3 da agência. Na época, ele alegou que o valor era fruto de uma “poupança" que faz para quando se aposentar e que o dinheiro não estava escondido, mas guardado em um cofre.
PF aponta contradição
Outro servidor da Abin afastado por determinação do de Moraes foi Marcelo Furtado, que ocupava o cargo de diretor do Departamento de Operações de Inteligência da Abin no ano passado. Ele foi nomeado no governo Lula por indicação de Paulo Maurício. O servidor estava fora do país para fazer um mestrado na maior parte do período em que o FirstMile foi operado pela Abin, mas constava como um dos fiscais do contrato de compra do programa espião.
Na investigação, a PF aponta que ao tratar da natureza das informações obtidas pelo FirstMile, em um procedimento interno da Abin, as declarações de Marcelo Furtado foram “contraditórias em relação aos elementos probatórios” colhidos pela apuração da Polícia Federal. O relatório apresentado pela PF ao STF afirma que Furtado teve conhecimento do “caráter intrusivo” do programa espião a partir de um próprio e-mail que recebeu da empresa responsável pelo desenvolvimento. O inquérito da Polícia Federal aponta que houve mais de 60 mil acessos ao programa espião entre 2019 e 2021 — em 21,3 mil casos, foram geradas informações de geolocalização. O programa era usado sem a supervisão da Justiça e, de acordo com a investigação, monitorou ilegalmente adversários de Bolsonaro.
Procurada, a Abin não se manifestou. A Secretaria de Comunicação da Presidência também foi procurada, mas não respondeu à pergunta enviada e afirmou que a demanda deveria ser encaminhada à Casa Civil. O GLOBO tentou contato por telefone com os citados, mas obteve retorno apenas de Paulo Maurício, que disse que não vai dar declarações no momento.
Na semana passada, em nota, a agência disse que “é a maior interessada” na apuração dos fatos e que continuará a colaborar com as investigações. "Há 10 meses a atual gestão da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) vem colaborando com inquéritos da Polícia Federal e do Supremo Tribunal Federal sobre eventuais irregularidades cometidas no período de uso de ferramenta de geolocalização, de 2019 a 2021. A Abin é a maior interessada na apuração rigorosa dos fatos e continuará colaborando com as investigações", afirmou o órgão.