Quem é Rocío San Miguel, a principal presa política da Venezuela? Entenda
A advogada, especialista em temas militares e defensora dos direitos humanos foi presa sexta passada e acusada pelo Ministério Público de "traição à pátria", "terrorismo" e "conspiração"
Aos 57 anos, a advogada e principal especialista venezuelana em temas militares Rocío San Miguel, diretora da ONG Controle Cidadão, é hoje a presa política mais importante do governo de Nicolás Maduro. Pessoas que conhecem San Miguel — muitas das quais trabalharam com a ativista e defensora dos direitos humanos — afirmaram ao Globo, sob a condição de anonimato, que sua detenção é um recado de Maduro a outras ONGs e lideranças da sociedade civil, em plena negociação para a realização de eleições presidenciais este ano.
San Miguel tem uma trajetória reconhecida dentro e fora do país e, apesar de ter questionado o chavismo com seus relatórios, análises e pesquisas sobre o mundo militar, não tem um perfil radical e jamais aceitou aliar-se a políticos de oposição. Sua arma contra Maduro é a informação privilegiada sobre o que acontece dentro dos quartéis venezuelanos.
No início de 2024, o Ministério Público venezuelano comunicou a ordem de detenção de duas mulheres, a jornalista Sebastiana Barraez, e Tamara Suju, também advogada a defensora dos direitos humanos.
Ambas já rumaram para o exílio na Europa, fugindo das pressões e ameaças permanentes que sofriam dentro de seu país. Barraez e Suju, como San Miguel, têm fontes militares e por isso, principalmente, incomodam o Palácio de Miraflores.
San Miguel, comenta-se em Caracas, tinha consciência de que poderia ser a próxima da lista, e talvez por isso organizou uma viagem para a Espanha, onde mora sua filha, Miranda, que a estava visitando na Venezuela.
A advogada não imaginou que seria detida pelo Serviço Bolivariano de Inteligência (Sebin) no aeroporto internacional de Maiquetía, sexta passada. Muito menos que sua filha, de 24 anos, seria presa no dia seguinte, quando retornou ao aeroporto para buscar as malas de ambas.
Miranda, que acaba de formar-se em jornalismo na Espanha, foi liberta nesta terça com seu pai, Víctor Díaz Paruta, ex-marido da ativista. Também ficaram livres os irmãos da diretora da ONG, Miguel San Miguel e Alberto San Miguel, todos com a condição de se apresentarem à Justiça periodicamente, proibição de sair do país e de falar com a imprensa.
Continua detido o ex-companheiro da advogada, o tenente-coronel da Força Aérea reformado Alejandro José González de Canales Plaza. O Ministério Público acusou San Miguel de "traição à pátria", "terrorismo" e “conspiração”.
De acordo com o governo Maduro, a diretora da ONG participou de conspirações contra o governo Maduro, plano que oficialmente foi chamado de “Pulseira Branca” (em tradução livre). Já o tenente-coronel reformado da Força Aérea enfrenta denúncias de “revelação de segredos de Estado”. Se tem uma coisa que fica clara com a prisão de San Miguel e seu ex-companheiro é a obsessão do governo Maduro por controlar todo tipo de informação sobre o que realmente acontece dentro da Força Armada Nacional Bolivariana (FANB).
Em momentos de negociações políticas cruciais para a realização de eleições presidenciais que, segundo defendem todos os países da região, entre eles o Brasil, devem ser democráticas e transparentes para serem reconhecidas pela comunidade internacional, a prisão de San Miguel evidencia o temor de Maduro de que suas fraquezas dentro do mundo militar sejam conhecidas.
Em uma das últimas entrevistas que concedeu, ao jornalista César Miguel Rondón, outro emigrado forçado da Venezuela, San Miguel falou sobre a expulsão de mais de 30 militares da FANB, supostamente envolvidos em complôs contra o governo. A advogada revelou que vários dos nomes divulgados pelo governo sequer estavam no país.
San Miguel é formada em Direito na Universidade Central da Venezuela (UCV), onde também fez uma pós-graduação em Direito Internacional, Econômico e de Integração. A defensora dos direitos humanos, que já se envolveu pessoalmente em casos de prisões arbitrárias do governo Maduro, também estudou no Centro William J. Perry de Estudos de Defesa Hemisférica, Think Tank que expressou seu repúdio à detenção de sua ex-aluna.
Atualmente, San Miguel era professora de Direitos Humanos da UCV, e considerada a acadêmica que melhor conhece em seu país toda a legislação referente ao mundo militar. Em situações lembradas por pessoas que San Miguel ajudou, entre elas a jornalista Andreina Flores, que vive na França, a advogada enfrentou os militares com seu conhecimento sobre as leis que regem a segurança interna em seu país.
Em 2016, a ativista, segundo lembrou Andreina em sua conta na rede social X (ex-Twitter), foi até o local onde a jornalista e outro colega estavam presos e exigiu a liberação de ambos com argumentos implacáveis, de uma pessoa que sabe perfeitamente como desmontar operações militares do chavismo. "O militar de mais alta patente da Direção Geral de Contrainteligência Militar (DGCIM) foi cedendo pouco a pouco, e entregou a Rocío tudo o que ela pedia, sem reclamar. Eu a olhava com admiração e agradecimento”, escreveu a jornalista.
Quando Hugo Chávez já era presidente da Venezuela, em 2004, San Miguel trabalhava na Comissão de Fronteiras do Ministério das Relações Exteriores do país. Foi uma das servidoras que assinou a famosa Lista Tascón, na qual os trabalhadores do Estado apoiaram a destituição de Chávez no referendo para revogar seu mandato, realizado naquele ano.
O governo demitiu vários dos servidores que aderiram à Lista Tascón, e San Miguel, junto a outros, recorreu à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O caso chegou à Corte Interamericana de Direitos Humanos, que em 2018 condenou o Estado venezuelano por violação de direitos civis. Uma vitória de San Miguel que o chavismo nunca digeriu.
A prisão da advogada, levada, segundo confirmou o Ministério Público nesta quarta-feira, para o Heicoide, um dos principais centros de detenção do Sebin em Caracas, acontece em momentos em que a Assembleia Nacional discute um projeto de lei para limitar — e talvez até criminalizar — as ONGs no país. Não se trata de uma presa qualquer, nem de uma detenção qualquer. Maduro está, através do caso San Miguel , deixando claro até onde seu governo está disposto a chegar com o plano autodenominado Fúria Bolivariana.