ARTISTAS

Chaves x Quico: entenda o conflito entre os artistas que deram vida aos personagens da série

'Não eram temperamentos fáceis', diz Roberto Gómez Fernández, filho do criador das séries, Roberto Bolaños, em entrevista ao Globo

Chaves: A Exposição - Divulgação/Cesar Araújo

Conforme publicado no Globo no último domingo (18), "Chaves" e "Chapolin Colorado" seguem fora do ar, na televisão, no streaming e no YouTube, há quase quatro anos, por conta de um impasse entre o Grupo Chespirito e a emissora mexicana Televisa. Herdeiro de Roberto Gómez Bolaños (1929-2014), o criador da vila e dos personagens que cativaram gerações de fãs, Roberto Gómez Fernández, diretor do grupo que leva o nome artístico de seu pai, falou com exclusividade sobre o andamento das negociações para o retorno dos episódios ao alcance do público.

Fernández também falou sobre diversos outros assuntos, como "Chaves: a exposição", mostra que já levou mais de 100 mil visitantes ao MIS Experience, em São Paulo, desde que inaugurou em janeiro. Com itens raros, como roteiros e figurinos originais da época, a exposição foi prorrogada até 30 de março.

O empresário ainda tocou em temas sensíveis, como o desgaste entre os atores do elenco de "Chaves". "Não eram temperamentos fáceis", diz Fernández, salientando seu esforço "conciliador" nos últimos anos para aparar arestas que restavam desde quando seu pai era vivo. É sabido, por exemplo, do conflito que Carlos Villagrán, o ator que deu vida a Quico, teve com Roberto Bolaños.

Em 1979, Villagrán deixou os programas "Chaves" e "Chapolin" para tentar carreira solo. A partir daí, houve uma série de troca de farpas públicas entre ele e Roberto Bolaños, que não o autorizou a usar o personagem em um programa só seu na Televisa. Carlos Villagrán reivindicou como sua a criação do personagem Quico junto à Justiça mexicana, mas não obteve sucesso.

A saída que Villagrán encontrou foi mudar de país para driblar, de certa forma, os direitos autorais do personagem registrados em nome de seu desafeto. No começo dos anos 1980, aceitou uma proposta de uma emissora venezuelana para se apresentar com o menino mimado e bochechudo que lhe deu fama. Naquele país, registrou o personagem com outra grafia — Kiko —, e fez programas como "Kiko Botones" e "Federrico", mas nenhum alcançou o sucesso esperado. Villagrán e Bolaños chegaram a se encontrar em 2000, durante uma especial da Televisa em homenagem ao criador de "Chaves". Mas não houve reconciliação até 2014, quando Roberto Bolaños morreu devido a problemas respiratórios, aos 85 anos.

Guardada as proporções, Maria Antonieta de las Nieves, a atriz que interpretava Chiquinha, também teve problemas com Bolaños por conta de direitos autorais da personagem. Segundo Fernández, no entanto, as diferenças com a artista ficaram para trás. Quando o criador do "Chaves" morreu, em 2014, Antonieta fez uma declaração emocionada.

"O dia de hoje, 28 de novembro de 2014, será um dia que tocará o coração de muitas gerações, a morte de Roberto Gomez Bolaños. Extraordinário comediante, escritor, ator, produtor e SER HUMANO. Independentemente dos atritos que tivemos nestes últimos anos, que realmente não foi diretamente com ele, para mim foi um grande exemplo, um estupendo amigo", escreveu a atriz à época.

Leia a íntegra da entrevista com Roberto Gómez Fernández publicada no jornal O Globo em 18/02/2024

Em cartaz no MIS Experience, 'Chaves: a exposição' é um sucesso de público. Como é receber uma homenagem como essa em outro país?

É difícil explicar. É avassalador, felizmente avassalador, como eu disse quando estivemos lá em São Paulo. Creio que é a manifestação da obra e da pessoa de Roberto Gómez Bolaños mais rica que já vimos. Os detalhes de sua vida e de sua obra, dos seus personagens, a forma como a exposição está montada tem um nível de informação fantástico. Fiquei muito surpreso. Eu já sabia como seria, mais ou menos. Presenciei muito planejamento antes, mas ver lá ao vivo foi uma emoção enorme para mim.

De todos os itens expostos na mostra, qual você considera o mais raro? E por que?

O mais raro? Esta é uma boa pergunta. Existem vários, é claro. Talvez isso seja pessoal para mim, mas a marreta original Chapolin, além do uniforme original dele. Mas tem também esses roteiros escritos pelo meu pai, que são raros, as pessoas normalmente não veem. São coisas que não aparecem nos programas. É algo interessante ver escrito o que se vê há 50 anos na televisão, certo?

Sim, claro. O Grupo Chespirito pretende levar esta exposição para outras cidades, tanto no Brasil como em outros países?

Acho que é algo que deveria acontecer. Vale a pena e suspeito também que poderíamos até ter alguns acréscimos. Não, não quero dizer melhorias porque é difícil melhorar tal como está lá em São Paulo, mas sim acrescentar alguns elementos atrativos para diferentes países, por exemplo, coisas específicas de alguns países. Definitivamente vale a pena.

Por que 'Chaves' e 'Chapolin Colorado' fizeram tanto sucesso no Brasil? Existe uma lenda de que eles tiveram mais sucesso aqui no Brasil do que no próprio México. É verdade?

É uma pergunta que fizeram várias vezes ao meu pai. É difícil responder ainda hoje. É difícil porque há muitas leituras. Não tenho certeza se no Brasil teve mais impacto do que no México. Acredito que no mesmo nível, ou muito parecido, sim. O nível de aceitação no Brasil é incrível. Acho que por conta dos ingredientes que temos em comum. Somos povos muito parecidos apesar da língua, temos idiossincrasias semelhantes. Uma atitude parecida em relação à vida, à gestão das emoções, ao dramático, mas também o apreço pelo humor e pela festa. Veja a vila do Chaves. Somos pessoas de contrastes, de altos contrastes, né? E a vila é um microcosmo cheio de contrastes em todos os sentidos, não obviamente reduzido e confinado a esse pequeno espaço. São contrastes que podem ser vistos tanto no México como no Brasil e em muitos lugares, não apenas na América Latina. Acho que existem milhões de pessoas como o Seu Madruga, por exemplo, no México e no Brasil. E obviamente eles se identificam. Uma resposta que meu pai sempre dava é que era muito bem escrito. Sim, era. E acho que tem sim a ver com isso. Nem devemos tentar encontrar algo muito profundo, sociológico, filosófico, psicológico ou antropológico. Era um ótimo roteiro de comédia. Com personagens fantásticos e os atores perfeitos para esses personagens. E é por isso que não foi sucesso só no Brasil e no México, mas em vários lugares, como na Europa. Meu pai tinha a necessidade de fazer algo universal e atemporal, porque assim alcançaria o maior número possível de pessoas de qualquer lugar do mundo. E acertou em cheio, porque a gente vê que ainda vale, né? Essas relações que existem dentro da vila entre os personagens, você encontra por aí, em 2024.

Quais são as melhores lembranças da sua juventude em torno desses programas? Você ia ao estúdio, por exemplo, para ver as gravações? E, nessa época, já tinha noção da grandeza do trabalho do seu pai?

Sim, ia aos estúdios desde muito jovem, desde os 7 anos. Eu nem entendia muito bem, o trabalho do meu pai, assim como os meus colegas que iam ao hospital porque os pais eram médicos, ou bombeiros ou arquitetos. Meu pai se vestia de vermelho com antenas e ia para um estúdio de televisão, e eu o acompanhava e era obviamente muito divertido. Mas tenho consciência do impacto da transcendência disso em mim até hoje. Por exemplo, a exposição em São Paulo me toca. Porque continuo a me surpreender com o passar do tempo e depois de fazer algumas reflexões. Sempre admirei a disciplina do meu pai. Era muito disciplinado no seu trabalho, que exigia disciplina. E isso significava estudo, concentração, ensaio. E repetição. Repetir, repetir, repetir e repetir até dar certo, né? Numa época em que a comédia para a televisão, pelo menos aqui no México, era feita mais num conceito de improvisação, era mais engraçado como mudavam o roteiro ali no meio da cena. Ele foi contra todos esses conceitos a partir de um rigor, repito, de muito ensaio, muita repetição e, sobretudo, de um roteirista dedicado. Ficava sentado muitas horas por dia, escrevendo, escrevendo e escrevendo. São séries que estão aí há muito tempo e ele foi o único roteirista. Hoje, isso é algo impensável.

Como vão as negociações do Grupo Chespirito com a Televisa para chegar a um acordo para a volta da transmissão dos programas?

Olha, não posso falar muito sobre isso em público, o que posso dizer é que estou nisso todos os dias e que não descansarei enquanto não acontecer. Se uma janela se fechar, buscarei outra. Sei que não é um caminho de linha reta, isso está claro pra mim. Mas é a maior responsabilidade que tenho, o retorno das séries originais. Não posso falar muito, mas há portas abertas. Me parece que 2024 será um ano muito bom.

Florinda Meza disse em comunicado que é colaboradora literária dos programas e que "um comprador" já tentou quatro vezes fazer uma transação em negociações para as quais ela não teria sido convidada. Isso é verdade? Qual é o papel dela nessas negociações?

Olha, prefiro não falar sobre isso, por vários motivos. Não há questões jurídicas envolvidas, mas é um tema que creio que não deveria falar em público.

As séries estão há mais de três anos fora do ar. Quais esforços vocês fazem para mantê-las vivas entre os fãs? Isso é algo que te preocupa?

Sim, claro. Repito, isso está na minha cabeça todos os dias. Mas enquanto não acontece, algo tem que ser feito, como você diz. E então há um esforço importante. E que tem mais a ver com comunicação, com um trabalho de marketing. Você tem que ter os personagens posicionados de alguma forma. E é isso que fazemos aqui no Grupo Chespirito, estamos criando novas produções, mas isso é um assunto à parte. Tratamos sempre desse tema, a preservação do grande trabalho do meu pai. Mas tudo gira em torno dos originais, porque, bom, nada se compara.

Como os personagens são tão queridos aqui no Brasil, é natural que se fale muito sobre a vida pessoal dos atores. Houve um certo desgaste entre Carlos Villagrán e María Antonieta de las Nieves (atores que interpretaram Quico e Chiquinha, respectivamente) e seu pai quando ele era vivo. Como ficou isso? Houve uma aproximação deles com Grupo Chespirito? O relacionamento entre os atores com o grupo é bom?

De fato, como toda convivência de tantos anos, há um desgaste e muitas coisas podem acontecer. Era um grupo extraordinário, muito, muito unido, e é difícil manter tudo bem sempre quando há pessoas com características fortes e dominantes, como este grupo era.

Não eram temperamentos fáceis. Todo mundo tinha suas complicações. E felizmente, porque foi por isso que puderam fazer o que fizeram também. Há tempos que tentamos fazer um trabalho de conciliação e tivemos sucesso, fizemos esforços importantes. Eu não estou na posição de ser quem perdoa, mas sim de quem reconcilia. Houve diferenças, mas meu pai não está aqui. Acho que ele teria gostado que isso acontecesse (a reconciliação), era algo que machucava muito ele porque foi um grupo muito unido, então tenho certeza que ele gostaria que houvesse uma conciliação.

Não tive todo o sucesso que gostaria. Mas o que posso te dizer é que com o Édgar (Vivar, intérprete do Seu Barriga e do Nhonho), com a família de Ramón Valdez (Seu Madruga), me dou muito bem com o Esteban Valdés seu filho, com a família de Rubén Aguirre (Professor Girafales) também. E com María Antonieta (Chiquinha), é verdade, houve diferenças, mas hoje tenho sorte e sou grato por termos reconciliado muitas coisas, reconhecendo que as pessoas cometem erros no caminho e isso não significa que não podemos corrigi-los. Acontece com todo mundo e acho que a vida fica mais bonita com essa reconciliação. Tenho visto muito María Antonieta ultimamente, conversamos bastante. Sou muito grato a ela.

Outra demanda muito recorrente dos fãs é um filme ou uma série documental sobre "Chaves" e "Chapolin". Existe algo planejado neste sentido?

Existe. Primeiro tem um projeto sobre a vida do meu pai, que é uma biosérie. Não é documentário, mas sim ficção, para a HBO. Não posso dar muitos detalhes. E existem intenções de documentários, muitos, de vários lados. O documentário tem características muito particulares de direitos autorais. Praticamente qualquer pessoa pode fazer um documentário se cumprir certas regras jornalísticas, vamos dizer. E não tenho certeza se um documentário feito por nossas mãos é a melhor ideia, talvez seja melhor que alguém de fora o faça, com uma visão externa. Há um em desenvolvimento. Para algumas coisas, temos que dar autorização, mas para outras não é necessário. O que acontece na exposição em São Paulo, por exemplo, sobre a vida do meu pai e sobre o trabalho dele, é uma espécie de documentário. De uma forma artística, maravilhosa. Se você ainda não foi, por favor, vá.