"O Ocidente deve parar de encher a Ucrânia de armas", diz chefe da diplomacia do Kremlin
Serguei Lavrov, no Rio para a reunião do G20, diz que é prioridade do governo Putin o fortalecimento do papel do Brics e afirma que Kiev tem de aceitar nova realidade territorial
O ministro das Relações Exteriores da Rússia, Serguei Lavrov, é um dos chanceleres do G20 que participarão da reunião que acontecerá no Rio entre hoje e amanhã, a primeira de alto nível da presidência brasileira do grupo. Antes de chegar ao Brasil, Lavrov concedeu uma entrevista exclusiva aos jornais O GLOBO e Valor, na qual deixou claro o desejo da Rússia de fortalecer a relação com o Brasil de Lula, a prioridade dada pelo Kremlin ao Brics e o apoio de seu governo à proposta feita pelo governo brasileiro, em 2023, de criar um grupo de amigos para mediar a paz entre Rússia e Ucrânia. “Analisamos com muita atenção a iniciativa dos nossos amigos brasileiros”, afirmou o chanceler russo.
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A seguir, os principais trechos da entrevista, concedida por e-mail antes da morte do opositor russo Alexei Navalny na prisão, no último dia 16.
Na opinião do senhor, qual deve ser o papel do Grupo dos 20 hoje, e quais são os desafios que o G20 enfrenta no ano da presidência do Brasil?
O G20 foi criado como um formato econômico. Essa decisão se deveu ao fato de os EUA terem enfrentado uma grave crise financeira em 2008. Naquela época, as maiores economias conseguiram encontrar soluções eficazes. Ao mesmo tempo, ficou claro que não se podia confiar em um único centro de pujança econômica. Portanto, nos últimos anos, o G20 tem travado um diálogo sobre a reforma e a restauração da eficiência das instituições econômicas globais.
A dinâmica positiva desse fórum se deve, em grande medida, ao fato de que os países de mercados emergentes estão demonstrando independência e insistindo em que os seus interesses sejam levados em conta de forma justa. A declaração adotada no final da Cúpula de Délhi, em 2023, identifica as prioridades dos países em desenvolvimento. A adesão da União Africana ao G20 foi uma grande conquista.
Consideramos positiva a iniciativa brasileira de realizar uma reunião dos chanceleres do G20 à margem do segmento de alto nível da Assembleia-Geral da ONU.
A agenda da presidência rotativa brasileira nesta organização está em consonância com os planos da Rússia no Brics, que ela preside em 2024. O Brasil convidou o Novo Banco de Desenvolvimento para colaborar com o G20. É plenamente justificado o foco na superação dos desafios no caminho da implementação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. É necessário elaborar soluções equilibradas para a transição energética, a transformação digital, o restabelecimento das cadeias de fornecimento, o acesso aos recursos energéticos e aos alimentos. É importante que os países do G20 se comprometam a não usar a economia como arma e a evitar a competição injusta.
O Brasil e a Rússia são parceiros no âmbito do Brics, um grupo que foi ampliado para admitir novos países, como o Irã. Qual é a importância do Brics para a Rússia na sua política externa e na sua visão da geopolítica global? Os países do Brics são os principais aliados da Rússia atualmente?
O fortalecimento do potencial e do papel do Brics nos assuntos mundiais é a nossa prioridade. No Brics, os países que representam diferentes sistemas econômicos e políticos, religiões e macrorregiões trabalham juntos em pé de igualdade. Seu prestígio internacional vem crescendo de forma constante. A admissão dos cinco novos países como membros a partir de 1º de janeiro deste ano é uma prova disso. O Brics é um dos pilares do mundo multipolar.
A partir de 1º de janeiro de 2024, a Rússia assume a presidência rotativa do Brics. O programa para 2024 inclui mais de 200 eventos. Iremos contribuir para que os novos membros se integrem aos trabalhos do bloco de forma orgânica.
Dois anos se passaram desde o início da operação militar especial (como a Rússia se refere à guerra). Atualmente, estão sendo travadas discussões sobre o fim do conflito, mas qual é, neste momento, o objetivo final da operação na Ucrânia?
As metas e os objetivos da operação militar especial foram definidos pelo presidente Vladimir Putin. Eles são os seguintes: a desmilitarização e a desnazificação da Ucrânia, a eliminação das ameaças à segurança da Rússia que emanam do seu território.
Para uma solução sustentável e justa da crise ucraniana, as suas causas principais devem ser eliminadas. O Ocidente deve parar de encher a Ucrânia de armas, e o regime de Kiev deve parar com as hostilidades. A Ucrânia deve readotar o seu status neutro, de não alinhamento e não nuclear, e respeitar os direitos e as liberdades dos seus cidadãos, bem como reconhecer as novas realidades territoriais e a situação “no terreno”.
Nem Kiev nem o Ocidente demonstram a vontade política para a resolução do conflito. Não temos escolha: a operação militar especial continuará até que seus objetivos sejam alcançados.
Respeitando as suas tradições diplomáticas, o Brasil condenou a invasão da Ucrânia, bem como as sanções contra a Rússia e o envio de armas a Kiev por países como os Estados Unidos. Celso Amorim, assessor especial para Assuntos Internacionais do presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, reuniu-se com o presidente da Rússia, Vladimir Putin, em Moscou, e com Volodymyr Zelensky em Kiev. Como o senhor avalia o papel do Brasil no conflito? O Brasil pode ser um eventual mediador ou facilitador nas negociações, pois está em contato com ambos os lados?
Valorizamos a disponibilidade do Brasil em promover a busca de uma solução por meios políticos e diplomáticos. Em abril de 2023, o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, propôs a criação de um “grupo de amigos para mediar a paz”. Analisamos com muita atenção a iniciativa dos nossos amigos brasileiros.
A Rússia está aberta à busca de uma solução pacífica para o conflito. No entanto, os nossos oponentes em Kiev e no Ocidente estão empenhados em promover a “fórmula” de Volodymyr Zelensky, que representa um ultimato inaceitável para a Rússia, e rejeitam categoricamente outras iniciativas, inclusive a brasileira. Para começar, Kiev terá que suspender a proibição de diálogo com Moscou, que ela impôs a si mesma.
Neste momento, a Europa está relativamente unânime quanto ao apoio ao governo ucraniano e quanto às relações com a Federação Russa. Como serão, na sua opinião, os contatos entre Moscou e os países europeus no futuro? O senhor acha possível que as relações voltem ao normal no futuro próximo?
Os países da União Europeia impuseram a si mesmos a sua inimizade com a Rússia. Cabe a eles decidirem o que fazer com essa sua escolha. Considerando a intenção de Bruxelas de nos infligir uma “derrota estratégica”, não podemos falar sobre as perspectivas de restabelecimento das relações.
Se os países europeus abandonarem sua política russofóbica e apresentarem ideias realistas sobre novos princípios das relações, nós as estudaremos. Tomaremos a nossa decisão com base nos nossos interesses nacionais.
Os Estados Unidos estão em plena corrida eleitoral. É provável que a principal disputa se desenrole entre os dois presidentes bem conhecidos em Moscou, Joe Biden e Donald Trump. Alguns analistas e até mesmo personalidades oficiais deram a entender que o presidente Vladimir Putin preferiria que Donald Trump retornasse à Casa Branca e, possivelmente, ele teria a oportunidade de ver a vitória dele em novembro deste ano para iniciar as negociações sobre o fim do conflito na Ucrânia. Gostaríamos de ouvir sua opinião sobre essas suposições e perguntar se o Kremlin tem um candidato preferido.
A Rússia é vista pela elite governante dos EUA, independentemente da filiação partidária, como adversário e ameaça. O presidente anterior, durante os seus quatro anos na Casa Branca, não fez nada para melhorar as relações entre os EUA e a Rússia.
Não temos ilusões e não esperamos que a política antirrussa dos EUA sofra mudanças em breve. Estamos prontos para trabalhar com qualquer líder em quem o povo americano confiar. O que é importante para nós não é a pessoa de um político, mas a sua política em relação à Rússia. O presidente Vladimir Putin disse isso alguns dias atrás numa entrevista na televisão.