GUERRA

''Explicamos às crianças como reconhecer uma mina'', diz porta-voz da Cruz Vermelha na Ucrânia

Após dois anos de guerra, consequências do conflito para a Ucrânia incluem milhões de refugiados, milhares de desparecidos e mais de 30% do território contaminado por explosivos

Mulher e criança observam memorial com nomes de civis mortos durante a ocupação de Bucha, na Ucrânia - Sergei Supinsky/AFP

Após dois anos da invasão russa ao seu território, a serem completados neste sábado, a Ucrânia enfrenta um cenário de muitas incertezas e perdas. As esperanças de uma contraofensiva eficaz foram frustradas, sobretudo com a recente captura de Avdiivka, no leste, pela Rússia, sendo o maior avanço de Moscou desde a conquista de Bakhmut, na mesma região, em maio passado.

Para além dos problemas no front — que também passam pelo enfraquecimento do fluxo de ajuda militar de seus aliados, em especial dos Estados Unidos — e da perspectiva de um fim ao conflito ainda estar distante, há o impacto da guerra nos civis.

Desde o início da ofensiva russa, em 24 de fevereiro de 2022, mais de 10 mil pessoas perderam a vida na Ucrânia, com cerca de 3,7 milhões de deslocados internos e mais de 6,5 milhões de refugiados, segundo dados recentes da ONU — sem contar os dados como desaparecidos (o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, CICV, atualmente investiga em torno de 23 mil casos).

Os 24 meses de guerra também levaram o país a se tornar o mais fortemente minado em todo o mundo, com cerca de 174 mil quilômetros quadrados do território (o que corresponde a cerca de 30%) contaminados por minas terrestres. Ainda segundo a ONU, mais de 14,6 milhões de pessoas na Ucrânia, cerca de 40% da população, precisarão de ajuda humanitária em 2024.

O porta-voz do CICV em Kiev, Achille Després, falou ao Globo sobre a situação humanitária geral na guerra após dois anos da invasão russa e quais os maiores desafios da instituição em relação ao conflito atualmente.

Confira a seguir os principais trechos da entrevista concedida por telefone:

O último relatório da Cruz Vermelha diz que a entidade busca cerca de 23 mil pessoas desaparecidas devido ao conflito, atendendo a mais de 115 mil solicitações de familiares. Como são esforços para ajudá-los a localizar seus parentes desaparecidos? Há uma estimativa de quantas crianças são parte deste número?

Infelizmente, isso é provavelmente apenas a ponta do iceberg, já que é possível que muitas famílias não tenham entrado em contato conosco. E essas pessoas estão tanto na Ucrânia quanto na Rússia.

Durante conflitos armados, todas as partes envolvidas têm a obrigação de compartilhar informações conosco sobre pessoas protegidas que estão sob sua custódia, como prisioneiros de guerra ou internos civis. Nós agimos como intermediários, recolhendo e revisando as listas e transmitindo a informação para as famílias.

Sobre as crianças especificamente, nós não temos um número. O total inclui civis e crianças, mas a grande maioria desses 23 mil desaparecidos que buscamos é de militares, de ambos os lados.

E qual a situação geral das crianças em meio ao conflito hoje, especialmente no que diz respeito à educação? O Unicef alertou no ano passado sobre uma "perda generalizada no aprendizado" das crianças em idade escolar por conta do conflito.

Sim, uma coisa que temos visto é que milhares de crianças infelizmente tiveram sua educação severamente interrompida. Escolas, infelizmente, foram danificadas ou até mesmo destruídas como resultado do conflito armado. Isso é especialmente relevante próximo à linha de frente. Muitas crianças simplesmente não têm mais escola para frequentar ou precisam continuar sua educação on-line.

Eu moro na capital, Kiev, e mesmo aqui há áreas em que as sirenes tocam pelas manhãs e temos que nos refugiar em abrigos, incluindo estações de metrô, e eu vejo famílias com crianças que deveriam estar na escola muito confusas, sem saber o que está acontecendo. Isso já ocorre há dois anos e você pode imaginar o quão difícil é para as crianças, o impacto psicológico e mental que isso causa nelas.

Com a Ucrânia agora sendo reconhecida como o país com o maior número de minas terrestres no mundo, que medidas a Cruz Vermelha toma para garantir a segurança dos civis em áreas afetadas?

Os combates na linha de frente têm se movido várias vezes de uma direção para outra ao longo dos últimos meses, e isso significa que o problema das minas terrestres é muito agudo em muitas partes do país. Sabemos, a partir de outros conflitos, que os efeitos da contaminação por minas terrestres, de projéteis não detonados, restos explosivos de guerra e outras bombas que podem não ter detonado, permanecerão nas vidas civis por muitos anos.

O que fazemos é fornecer expertise técnica e apoio técnico aos socorristas. Nós os dotamos dos equipamentos para o descarte seguro de explosivos, também treinamos categorias específicas da população que estão em áreas de risco particular.

Outra coisa que também fazemos, infelizmente, é treinar crianças para reconhecer os riscos relacionados às minas terrestres. Trabalhamos com nossos parceiros para ir às comunidades localizadas nas linhas de frente e áreas onde os riscos de minas são mais agudos.

Estive pessoalmente em uma dessas regiões há alguns meses. Fazemos o que chamamos de treinamento porta a porta, indo de casa em casa e reunindo as pessoas, especialmente crianças, para explicar a elas, em palavras muito simples, como reconhecer o que é uma mina, o que é um projétil não detonado, o que fazer, como reconhecer o risco, estar ciente deles e entender os procedimentos de segurança. É muito triste que as crianças precisem aprender isso, mas é, infelizmente, muito necessário.

Com os recentes ataques russos, houve um novo aumento no número de pessoas se deslocando internamente? O que mudou do início da guerra até aqui?

É difícil dizer se há um aumento ou diminuição agora. E parte do nosso trabalho é ajudar pessoas que tiveram que deixar tudo para trás, incluindo suas casas e pertences. Isso significa que muitas pessoas estão em extrema necessidade de apoio para necessidades muito básicas, como água e comida.

Entre as nossas prioridades agora é ajudar essas comunidades, especialmente para sobreviverem ao inverno. Em algumas regiões fica extremamente frio, podendo chegar a -20º Celsius, e há locais que foram severamente afetados pelos últimos combates. Muitas casas foram destruídas, às vezes não sobrou nem o teto para se protegerem. Nosso foco é ajudar esses locais afetados, com água e comida, além de mantê-los protegidos do frio. Doamos materiais para que as pessoas reconstruam suas casas, ajudamos a reparar áreas que ficaram inacessíveis.

Também trabalhamos em cooperação com o Ministério do Desenvolvimento Econômico [da Ucrânia] para fornecer a mais de 350 mil pessoas, principalmente deslocadas internamente dentro do país, um apoio financeiro direto regular. Elas recebem algum dinheiro em sua conta todos os meses para cobrir suas necessidades básicas, como alimentação, moradia e outras necessidades básicas.

Houve também um grande influxo de pacientes, especialmente em unidades de saúde próximas à linha de frente, devido ao aumento do número de militares atendidos. Isso também afeta os civis que precisam ser tratados pelos hospitais. Hoje temos mais de 35 unidades de saúde que apoiamos regularmente com a doação de equipamentos médicos, suprimentos médicos e medicamentos.

A longo prazo, nossa prioridade é ajudar as comunidades e pessoas mais diretamente afetadas, como idosos e pessoas com deficiências, que são tipicamente as que estão mais em risco em áreas de conflito.