ciência

Cientistas cultivam "miniórgãos" a partir de células de fetos no útero pela 1ª vez; entenda

Cientistas europeus recriaram pulmões, intestinos e rins para auxiliar no diagnóstico e tratamento de doenças congênitas

Cientistas criam 'miniórgãos' a partir de células fetais. - Giuseppe Cala/Paolo De Coppi/Mattia Gerli/PA

Agrupamentos de tecidos menores que a cabeça de um alfinete, cientistas criaram "miniórgãos" que são os primeiros feitos de células fetais humanas obtidos sem causar qualquer dano ao bebê futuro ou à sua mãe. As cópias tridimensionais do intestino, rins e pulmões abrem a possibilidade de diagnosticar e tratar doenças congênitas antes do nascimento e estudar estágios do desenvolvimento humano difíceis de acessar por outras técnicas.

"Até agora, não havia maneira de criar organoides em gestações ativas, (era possível) apenas se houvesse um aborto" explica Mattia Gerli, biotecnologista da University College London, no Reino Unido, e autor principal do estudo que criou os miniórgãos. O trabalho envolveu 27 cientistas e médicos britânicos, da Itália e da Bélgica e foi publicado nesta terça-feira na revista científica Nature Medicine.

Os organoides foram inventados no final da última década. Eles começaram como uma única célula-tronco microscópica que se multiplicou em uma placa de Petri para formar intestinos, corações, cérebros em miniatura, entre outros órgãos. Um de seus usos experimentais mais promissores é reproduzir os órgãos de um paciente em laboratório para escolher o tratamento mais adequado para seu perfil genético e o de sua doença, especialmente em casos de câncer.

Até agora, porém, miniórgãos foram feitos apenas a partir de células-tronco extraídas de embriões inviáveis, como frutos de um aborto, ou de células-tronco adultas reprogramadas. Nunca antes foram retiradas de fetos vivos em desenvolvimento no útero.

Agora, a equipe de Gerli alcançou o feito usando o líquido amniótico, que envolve o feto dentro do útero da mãe. Os pesquisadores analisaram amostras do líquido de 12 mulheres grávidas que se submeteram a uma amniocentese, uma técnica diagnóstica pré-natal.

A análise molecular desse fluido identificou células-tronco epiteliais que haviam se desprendido do feto e são responsáveis por formar diferentes órgãos. Cultivadas em laboratório, cada uma dessas células começou a se multiplicar e crescer para formar minirrins, mini-intestinos e minipulmões funcionais com até um milímetro de diâmetro.

Todo o processo leva apenas quatro semanas. O resultado é que esses pequenos agrupamentos de células emulam os órgãos em crescimento de um feto em tempo real.

Os pesquisadores demonstraram o potencial dessa técnica para estudar doenças gerando mini-pulmões de bebês com hérnia diafragmática crônica. Essa condição rara faz com que os intestinos e o fígado comprimam os pulmões e impeçam o desenvolvimento fetal.

Os cientistas mostraram que essas réplicas reproduzem as características moleculares do distúrbio. A ideia é usar os organoides como ferramenta de diagnóstico antes que seja tarde demais para operar o feto, e escolher o melhor tratamento medicamentoso entre os disponíveis.

"Esperamos que nosso trabalho abra novas possibilidades na medicina pré-natal" diz Gerli. O pesquisador afirma que as técnicas para criar esses órgãos não são complexas ou caras, e ele defende a criação de bancos de células-tronco do líquido amniótico, já que milhares de mães se submetem a essa técnica diagnóstica a cada ano.

Em outubro, uma equipe de pesquisa israelense publicou um estudo, porém ainda em pré-print, sem revisão de pares, no qual afirmam ter gerado minirrins e minipulmões a partir de células-tronco do líquido amniótico e os aplicou no estudo de duas doenças congênitas potencialmente fatais. A equipe observou que oito em cada dez defeitos de nascimento não têm causa conhecida.

Para eles, miniórgãos modelados a partir do líquido amniótico podem ajudar a mudar essa estatística terrível. Além disso, acrescentam, esses organoides podem ser uma ferramenta poderosa para estudar os efeitos de compostos tóxicos presentes no ambiente no desenvolvimento humano.

Os pequenos órgãos criados pela equipe reproduzem o estado dos órgãos do feto com quatro a oito meses e meio de gestação. Isso abre a possibilidade sem precedentes de estudar o desenvolvimento em estágios muito avançados sem colocar em perigo a saúde do feto ou da mãe.

A bióloga Nuria Montserrat, pesquisadora do Instituto de Bioengenharia da Catalunha, enfatiza a importância do novo trabalho: — Ele abriu um novo campo usando um novo tipo de célula para criar organoides.

Os organoides também possibilitam a realização de experimentos rápidos e difíceis por outros meios, como observar a entrada do coronavírus nas células humanas. Recentemente, eles também permitiram identificar as células responsáveis pela metástase no câncer de cólon.

"Não parece mais tão estranho usar organoides em pesquisa e medicina" resume Montserrat. Ela coordena a plataforma de Biomodelos e Biobancos, que gerou mais de um milhão de amostras em 2022. — Olhando para o futuro, a criação de biobancos de líquido amniótico para tratamentos médicos precisos de doenças congênitas raras é muito interessante, embora no caso de minirrins, eles não sejam tão complexos quanto os gerados por técnicas anteriores — acrescenta.

A bióloga espanhola Marta Shahbazi lidera seu próprio grupo de pesquisa sobre desenvolvimento embrionário humano no Laboratório de Biologia Molecular de Cambridge, no Reino Unido. Ela aprecia que o estudo recém-publicado represente um passo em direção à aplicação da medicina personalizada antes do nascimento.

A amniocentese geralmente é realizada entre 14 e 22 semanas de gestação e requer o uso de uma agulha longa que passa pelo abdômen e entra no útero da mãe. No entanto, embora a técnica seja altamente aperfeiçoada, o risco de perder o bebê é de até um em cada 100 gestações.

Por esse motivo, só é usada como método para confirmar possíveis deformidades ou distúrbios genéticos detectados anteriormente por meio de testes não invasivos. Uma vez que o líquido amniótico tenha sido analisado, geralmente é descartado. Shahbazi enfatiza que este estudo é "muito valioso" porque recupera esse precioso material biológico e explora seu potencial médico sem exigir que a mãe se submeta a testes adicionais.