INTERNACIONAL

Irã cometeu 'crimes contra a humanidade' ao reprimir protestos pela morte de Mahsa Amini, diz ONU

Autoridades locais torturaram e assassinaram numerosos iranianos durante os manifestações, afirma relatório das Nações Unidas

Manifestante segura um retrato de Mahsa Amini durante uma manifestação em apoio a Amini, uma jovem iraniana que morreu após ser presa em Teerã pela polícia moral da República Islâmica - Ozan Kose/AFP

A violenta repressão de manifestações majoritariamente pacíficas no Irã em 2022 e a “descriminalização institucionalizada” contra mulheres e meninas no país levaram a “crimes contra a humanidade”. É o que afirma o relatório de especialistas solicitado pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas divulgado nesta sexta-feira, coincidindo com o Dia Internacional da Mulher. Segundo o documento, autoridades e forças de segurança locais detiveram, encarceraram, torturaram e assassinaram numerosos iranianos durante os protestos.

As manifestações tiveram início em setembro de 2022, quando Mahsa Amini, uma jovem curda de 22 anos, morreu sob custódia policial três dias após ter sido detida em Teerã por usar o véu de maneira “inapropriada”. O texto divulgado nesta sexta é um resumo do documento final que a missão apresentará ao Conselho de Direitos Humanos até 18 de março. Nele, afirma-se que as “graves violações dos direitos humanos” cometidas pelas autoridades podem ser “competência da Corte Internacional de Justiça” da ONU. Entre os crimes destacados há o de “perseguição por motivos de gênero” contra as iranianas que lideraram os protestos, cujo lema era “Mulher, vida e liberdade”.

O relatório afirma que as ocorrências não foram “casuais”, mas que estavam inseridas “em um ataque generalizado e sistemático contra a população civil, ou seja, (...) pessoas que expressavam apoio aos direitos humanos”. Essa violência “generalizada” e o fato de que as autoridades estatais de alto nível “encorajaram, sancionaram e apoiaram graves violações dos direitos humanos” levam as autoras do relatório a concluir que os perpetradores obedeciam a “instruções” do regime.

“Milhares de mulheres, homens e crianças foram detidos em todo o país” sem que qualquer dado público sobre seu número fosse fornecido, destaca o documento. ONGs estimam que ao menos 60 mil pessoas foram detidas, sendo 15 anos a média de idade das pessoas. A missão de investigação da ONU revela que “centenas” de meninas e meninos, alguns de 10 anos, foram encarcerados com adultos ou enviados para instituição de saúde mental ou reformatórios.

O Irã não permitiu que as integrantes da missão, as juristas Sara Hossain, Shaheen Sardar Ali e Viviana Krsticevic, viajassem ao país. As três pesquisadoras justificam os dados do relatório com base em documentos oficiais e privados, registros médicos, entrevistas remotas com vítimas e testemunhas, estas duplamente verificadas, e imagens de satélite. O documento adverte, porém, que a repressão do Irã pode ter sido ainda pior do que denuncia o texto.

Mais de 500 assassinatos
A primeira das mortes investigadas foi a de Mahsa Amini. No relatório, afirma-se que pouco depois de sua prisão pela polícia da moralidade, a mulher foi admitida no hospital Kasra de Teerã, já em morte cerebral, com “traumatismos infligidos enquanto estava sob custódia da polícia”. A missão está, portanto, “convencida” de que Amini “foi submetida a violência física que levou à sua morte”.

Após o início dos protestos, destaca o documento, centenas de manifestantes ou transeuntes morreram devido à repressão. “Em setembro de 2023, uma cifra crível era de 551 pessoas assassinadas, incluindo até 49 mulheres e 68 crianças (...). Houve mortes em pelo menos 26 das 31 províncias, com o maior número de vítimas em regiões habitadas por minorias [étnicas], particularmente na província de Sistão-Baluquistão, nas regiões curdas do país e no Azerbaijão ocidental”.

Apenas em 30 de setembro de 2022, 104 pessoas morreram em Zahedan, na província oriental de Sistão-Baluquistão, quando “as forças de segurança dispararam com rifles de assalto (AK-47) de uma delegacia localizada em frente a um complexo de oração, mirando civis”.

Execuções extrajudiciais
O “padrão de uso de armas de fogo”, como rifles de assalto “carregados com munição de múltiplos projéteis”, explica a “maioria das mortes”, continua o relatório. Policiais, membros da Guarda Revolucionária e paramilitares atiravam em situações que não envolviam risco para eles. O texto menciona um protesto pacífico “em frente a um prédio do governo ou base de segurança”. Segundo o documento, “os assassinatos seletivos de manifestantes constituíam execuções extrajudiciais”.

Em outras ocasiões foram usadas armas “menos letais”, mas que serviram para, por exemplo, cegar um ou ambos os olhos de numerosos cidadãos, incluindo crianças, com balas de borracha. Os feridos nas manifestações frequentemente não conseguiam acesso a atendimento médico, já que o Ministério da Saúde proibiu hospitais de atendê-los.

Em outros casos, houve detenções arbitrárias por “dançar, cantar, gritar, escrever slogans ou buzinar”. Familiares de manifestantes, profissionais de saúde, jornalistas, estudantes, professores, ativistas, artistas e atletas também foram presos por solidariedade com os protestos. O relatório acusa que, após a detenção, vinha a tortura – física, psicológica e verbal.

“Os detidos, incluindo crianças, foram submetidos a longas e repetidas sessões de interrogatório, durante as quais tiveram os olhos vendados ou foram encapuzados”. As torturas incluíam “socos, chutes, golpes, chibatadas e queimaduras, choques elétricos, suspensões e posições antinaturais”. Além disso, “a numerosos detidos, incluindo crianças, foram injetadas à força substâncias desconhecidas”, continua o texto.

Especialmente em centros de detenção secretos, o “padrão de violência sexual e baseada em gênero” incluiu “o estupro [também de crianças] com objetos, choques elétricos nos genitais, nudez forçada, toques e outras formas de violência”. Uma mulher detida em novembro de 2022 foi estuprada por dois agentes do Estado enquanto uma agente feminina, vestida com o chador que cobre mulheres da cabeça aos pés, a segurava.

Quando os detidos finalmente compareciam perante um tribunal, o faziam sem um advogado de sua escolha e sem serem autorizados a acessar seu processo para conhecer as provas contra eles. Nessas condições de privação de “garantias processuais”, nove manifestantes executados pelos protestos foram condenados à forca. Outrs 19 aguardam no corredor da morte por sua relação com os protestos.

A missão de investigação da ONU conclui o relatório incentivando os Estados que incorporam o conceito de justiça universal em suas legislações a abrir investigações sobre a repressão no Irã. Também os insta a conceder asilo e vistos aos participantes do movimento “Mulher, vida e liberdade”, dos quais destaca a “coragem e resiliência”.