CENSURA

Censura a obras literárias assustam setor do livro, que busca soluções para enfrentar ataques

Caso mais recente de "O avesso da pele" acende alerta

Jeferson Tenório e Airton Souza: autores afirmam ter sido alvo de censura - Divulgação/Reprodução Instagram

Autor de “O avesso da pele” (Companhia das Letras), um contundente retrato das relações raciais no país, Jeferson Tenório se juntou este mês a um grupo que inclui escritores importantes, como Machado de Assis, Carlos Heitor Cony, Euclides da Cunha e Franz Kafka.

Todos eles foram alvos de campanhas recentes para que fossem retirados de escolas brasileiras. Em alguns casos, a iniciativa partiu dos pais, em outros, de professores ou políticos, sempre com o argumento de que os livros seriam inapropriados para o uso em sala de aula (mais detalhes na linha do tempo ao lado).

Após ser criticado por professores, políticos e influencers por descrever atos sexuais e usar palavras de “baixo calão”, “O avesso da pele” teve exemplares recolhidos em escolas estaduais do ensino médio em Goiás e no Paraná. O episódio soou o alerta no mundo dos livros, mobilizando editores, autores e educadores. Está longe, porém, de ser o único caso de cerceamento de obras literárias nos últimos tempos.

— Sempre existiu esse tipo de cerceamento, mas agora os episódios estão mais visíveis — diz Dante Cid, presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL). — Não é algo que vai desaparecer simplesmente com trocas de governos, pois vem ocorrendo de forma mais ampla na sociedade. Quero crer que a liberdade vai prevalecer, mas sabemos que depende do momento político de cada cidade e Estado. E os livros são sempre um dos alvos favoritos desse efeito, porque são aqueles canais em que os temas mais controversos costumam ser tratados.

 

Premiado
“O avesso da pele” foi incluído no Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) por uma portaria em 2022, no governo Jair Bolsonaro, depois de selecionado por um edital de 2019. O programa indica obras que podem ser escolhidas por educadores de cada escola, mas a adesão não é obrigatória.

Ainda que as escolas estejam em seu direito de não trabalhar o livro, a rejeição a uma obra premiada pelo Jabuti e traduzida em 16 idiomas assustou o setor cultural. O mesmo ocorreu em 2020, quando a Secretaria de Educação de Rondônia considerou “inadequados” títulos de autores como Machado de Assis e Edgar Allan Poe. Pressionado, o governo recuou da decisão de recolhê-los das escolas.

Especialista em formação de leitor, a professora e crítica literária Ana Crelia Dias aponta que, mesmo durante a ditadura militar, o ensino da literatura nas escolas esteve fora do olhar da censura. Os livros teriam entrado no rol das contraindicações num governo democrático, em 2010, quando as discussões do politicamente correto avançaram em direção às artes “produzindo fenômenos contraditórios”, segundo Dias.

— Enquanto movimentos sociais começaram a exigir que a literatura fosse também politicamente correta, a ultra direita iniciou seus ataques à escola — diz ela. — Professores têm sido perseguidos, e até demitidos, por insistirem nas escolhas literárias que consideram adequadas à formação dos seus alunos. A pretexto de tutelar a escolarização, movimentos de censura têm desrespeitado a condição artística dos textos e a autonomia dos professores, subestimando a inteligência dos mais jovens.

Associar a literatura a valores, acredita Dias, é um mote para a censura, pois “estabelece paradigmas morais dentro dos quais a obra deve se mover”. E isso incluiria as “palavras de baixo calão” apontadas pelos críticos de “O avesso da pele”.

— Livros com palavrões apenas trazem situações cotidianas, que estão longe de escandalizar os mais jovens — diz a professora. — Ao contrário, encenam paixões, dão relevo a emoções específicas, constroem o tecido da expressão na obra.

Alvo da perseguição mais recente, Jeferson Tenório cita o despreparo que resulta em censura.

— Vejo dois movimentos nestas ações — ele comenta. — Um ponto vem do ambiente escolar, onde há um despreparo tanto para entender o que é a linguagem literária quanto para se lidar com temas sensíveis em sala. O segundo ponto é o cruzamento disso com um pensamento ideológico conservador ou mesmo de extrema-direita, que escolhe um objeto como inimigo. E este objeto é o livro, é a linguagem.

Tenório diz que as passagens que envolvem sexo e a terminologia usada não são gratuitas, mas têm o sentido de reforçar a sexualização dos corpos negros, um dos temas do romance. Ele acredita que o desconforto causado por sua obra não tem a ver com a história — “até porque quem está atacando provavelmente não leu o livro”, diz o escritor. De fato, o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, admitiu em entrevista ao UOL que não havia tido “coragem” de ler o romance.

— O livro serve de capital político para que se perpetue a informação falsa de que o governo está distribuindo livros “pornográficos” para adolescentes, o que é parte de uma estratégia (política) — opina Jeferson.

"Efeito Streisand"
Como acontece com frequência nesses casos, “O avesso da pele” se beneficiou do chamado “efeito Streisand” — fenômeno em que uma tentativa de censurar um tipo de informação se volta contra o censor. Após os ataques, as vendas do livro aumentaram em 400%. Caso clássico do “efeito Streisand” ocorreu na Bienal do Livro de 2019, quando o então prefeito do Rio, Marcelo Crivella, mandou ocultar, sob pena de recolhimento dos estandes, o romance gráfico “Vingadores, a cruzada das crianças”, que trazia cena de dois personagens masculinos se beijando. A tentativa de censura não apenas fracassou judicialmente como gerou mobilização do público, com divulgação não apenas do livro em questão, como também para outros títulos de conteúdo LGBTQIAPN+.

Isso não significa, todavia, que os ataques sejam comemorados. Cerceamentos ao conteúdo dos livros podem limitar a diversidade dos acervos públicos, prejudicando pessoas que têm bibliotecas como fonte única de leitura, acredita Dante Cid. Também podem incentivar a autocensura em autores que pretendem ter seus livros adotados nas escolas, além de ser uma fonte permanente de ansiedade para agentes de leitura que sofrem pressões. Em 2021, uma professora foi afastada de uma turma de um colégio de Salvador (BA) por indicar “Olhos d’água”, de Conceição Evaristo, que trata de violência contra mulheres negras.

— Não podemos repetir o que tem acontecido nos EUA, em que livros estão sendo banidos de bibliotecas escolares — diz Cid. — O setor do livro pode se unir e buscar proteção constitucional no STF, da mesma forma que fizemos quando se tentou censurar biografias. Também é preciso dar proteção a funcionários desses espaços, para que ninguém seja demitido por ter colocado um determinado livro na prateleira de uma biblioteca.

No ano passado, a Secretaria de Educação de Santa Catarina ordenou a retirada das bibliotecas escolares de nove obras, incluindo títulos como “It: a coisa”, de Stephen King, e “Laranja mecânica”, de Anthony Burgess. Para Marco Lucchesi, presidente da Fundação Biblioteca Nacional, uma biblioteca “digna de seu nome” é contra a censura.

— Uma biblioteca dá a liberdade de leitura a todas as formas cidadãs de aproximação ao livro — diz o imortal da ABL. — Uma das coisas que discutimos no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) é que o direito à leitura é um direito cidadão e universal.

Concurso na mira
Em janeiro, a demissão de Henrique Rodrigues, que estava à frente do Prêmio Sesc de Literatura desde 2003, gerou dúvidas sobre o futuro da premiação, criada para revelar autores estreantes. A saída teria sido motivada, segundo ele, por um incidente na Festa Literária de Paraty (Flip), em novembro. Na ocasião, a leitura de um trecho com sexo explícito de “Outono de carne estranha”, último vencedor do prêmio na categoria romance, sobre o amor entre dois garimpeiros, causou incômodo entre a direção do Sesc. Segundo a organização, o problema não foi o livro em si, mas a presença de crianças na plateia.

Na época, uma minuta interna sugeriu que o conteúdo poderia ativar “gatilhos emocionais e psíquicos” entre crianças e adolescentes e sua circulação deveria ser vinculada a classificação indicativa. Rodrigues tornou a minuta pública após a demissão, e acusou a instituição de tentar impedir Airton Souza de promover seu livro nas unidades do Sesc, como é praxe entre os vencedores. Em nota, o serviço afirma que as denúncias “não têm fundamento”, e que “sempre se pautou pela imparcialidade, com decisão soberana de suas comissões julgadoras”.

"Falsa moral"
Parceira do prêmio desde a criação, o Grupo Record manifestou preocupação com a demissão de Rodrigues e de outro funcionário do Sesc, responsáveis pela interlocução entre a organização e a editora. O grupo ameaçou encerrar a colaboração de mais de 20 anos.

— Creio que deveria haver um debate geral sobre o que é censurar expressões literárias — diz Henrique Rodrigues. — Por exemplo, o PNLD não conta com um serviço de mediação de leitura sobre as obras selecionadas. Não basta enviar livros para uma escola sem um serviço que prepare os professores e diretores para a leitura literária, bem como uma avaliação sobre o que tal obra suscitou naquela comunidade.

Para Airton Souza, há hoje um movimento conservador contra obras literárias, que estaria sendo realizado em nome de uma “falsa moral”:

— As pessoas perderam o medo de atacar as leis e as instituições que garantiam nossas liberdades. Infelizmente, é possível que isso se intensifique. Só há um jeito para começarmos um início de virada de chave sobre tudo isso: é formarmos um país de leitores e leitoras.