SAÚDE

Dengue: Brasil desconhece real taxa de letalidade da doença em 2024, afirmam especialistas

Com recorde de diagnósticos, país enfrenta alto número de mortes sob investigação, fator que pode subestimar agressividade de atual epidemia

O controle da dengue e do mosquito estão entre os maiores desafios da saúde pública no Brasil - Fernando Frazão / Agência Brasil

Com mais de 1,88 milhão de casos prováveis de dengue, o Brasil vive neste 2024 a maior temporada de infecções pela doença de toda a série histórica disponibilizada pelo Ministério da Saúde — que compreende os anos entre 2000 e 2024.

Trata-se de um volume de casos maior, inclusive, do que os vistos na epidemia vivida pelo país em 2015, quando o número de casos prováveis chegou a 1,68 milhões. Um fator ligado ao franco aumento de diagnósticos, porém, preocupa os epidemiologistas: o alto indicador de óbitos “em investigação” para a doença.

São mortes em que há indicativo de que foram causadas pela dengue, mas sem confirmação oficial por parte das secretarias municipais de saúde, responsáveis pela atualização dos casos.

De acordo com os dados mais atualizados do governo federal, em todo o país são 561 óbitos confirmados pela doença e outros 1.020 mortes em investigação. Ou seja, um número 81% maior do que as mortes conhecidos pela doença. O que pode elevar bastante a taxa de mortalidade, atualmente em 0,03%.

A demora em atualizar a real causa dessas mortes, ponderam especialistas em epidemiologia, impede que as prefeituras tenham uma visão realista da letalidade da dengue nesta temporada — e que, portanto, sejam capazes de avaliar seu serviço de atendimento.

— É um absurdo esse número de mortes em aberto. Se somar os (óbitos) suspeitos com os confirmados teremos mais mortes que o ano passado todo. Os dados atuais mostram que faltam os estados e municípios investigarem e fecharem esses óbitos em tempo oportuno — afirma Julio Croda pesquisador e professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS). — Como é possível que os gestores tomem decisões se desconhecem a real gravidade da doença?
 

Um levantamento realizado pelo epidemiologista e professor Wanderson Oliveira, ex-secretário de Vigilância e Saúde do Ministério da Saúde na gestão de Henrique Mandetta, ajuda a entender melhor o tamanho do trabalho que precisa ser feito. A análise compara o período de epidemia entre o final de 2022 e início de 2023 com a mesma época do ano entre 2023 e 2024 (ou seja, a atual onda da doença). De acordo com os dados analisados pelo epidemiologista, a essa altura do ano, em 2023, 82% dos casos totais de dengue tinham desfecho conhecido — ou seja, constavam um indicador para cura ou morte. Neste ano, a média dos casos totalmente fechados é de apenas 41%.

— É um dado que precisávamos ter. Em casos de dengue grave e óbito pela doença deveríamos contar com todos os detalhes de cada quadro. Entender a razão das mortes é fundamental para corrigir a situação, só assim seria possível, por exemplo, diagnosticar que não houve encaminhamento para a hidratação ou que há equipe sobrecarregada — afirma Wanderson.

Sem os dados de óbito conhecidos, o atual manejo da epidemia de dengue se dá, dizem os especialistas, numa espécie de voo cego.

— Esses óbitos em investigação não podem levar muito tempo para ter um desfecho. Na prática, a falta dessas informações não permite que tenhamos noção da magnitude da doença e nem a real severidade da epidemia. Estamos lidando com números que provavelmente não correspondem à realidade. E já temos dificuldade muito grande, com diversos estados decretando emergência — afirma Luana Araújo, epidemiologista e infectologista.

Questionado sobre a demora para determinar a causa das mortes em investigação, que constam em seu próprio painel, o Ministério da Saúde afirmou que o processo de análises desses óbitos é “cuidadoso e demorado”. A pasta afirmou que “abastece os estados e municípios com testes para detecção da doença”. A dengue, porém, pode ter diagnóstico feito de maneira clínica, sob análise do médico com dados epidemiológicos. Se um desses casos de “consultório” evolui para óbito é preciso que um teste positivo para a doença, ou para outras infecções, seja realizado, explicou a pasta. Esse processo é que faria a jornada dos óbitos suspeitos tornar-se mais longa.

Ao ser perguntada se houve pedido aos municípios para acelerar o processo de atualização dos dados no sistema nacional, a pasta não respondeu.

São Paulo
No estado de São Paulo, por exemplo, os óbitos em investigação também superam bastante o número de mortes confirmadas para dengue. Os dados mais recentes dão conta que são 78 mortes conhecidas pela dengue em comparação com 210 óbitos em investigação. De olho nessa lacuna, o governo do estado criou na semana passada o comitê estadual de investigação de óbitos por arboviroses urbanas (tipo de doença da qual a dengue faz parte).

— Precisamos levar em consideração o número de casos desse ano. Não há como comparar com 2023. Temos um comportamento diferente nesse ano, com a antecipação das chuvas e do aumento de temperatura — diz Tatiana Lang D'Agostini, diretora do Centro de Vigilância Epidemiológica (CVE) do Estado de São Paulo. — Mas estamos muito atentos à isso. Esse comitê terá especialistas convidados que apoiarão as investigações. Reforçamos com a vigilância municipal a importância da notificação, investigação e correto encerramento das fichas (onde há o cadastro de cada diagnóstico de dengue