Papa Francisco revisita memórias e projeta futuro da Igreja em autobiografia escrita a quatro mãos
Jornalista italiano Fabio Marchese Ragona foi incumbido de fazer o líder da Igreja Católica revisitar o próprio passado e resgatar memórias e reflexões construídas ao longo de quase nove décadas
Entre abril e fevereiro deste ano, o jornalista Fabio Marchese Ragona manteve contato quase diário com o Papa Francisco. Às vésperas do 11º ano do pontificado de Francisco (completados em 13 de março), o vaticanista italiano foi incumbido de fazer o líder da Igreja Católica revisitar o próprio passado e resgatar memórias e reflexões construídas ao longo de quase nove décadas. As conversas acabaram se tornando um trabalho de escrita à quatro mãos, com lançamento previsto nas livrarias brasileiras em abril, sob o título "Vida: Minha história através da História" (Ed. HarperCollins).
Em entrevista ao Globo — brevemente atrasada por questões tecnológicas e por uma ligação do Pontífice ao escritor —, Ragona falou um pouco do processo de produção do livro e revelou um pouco do Francisco que conheceu por meio de anedotas, histórias e da convivência.
Leia os principais trechos.
Como foi o contato com o Papa e as conversas durante a escrita do livro?
Foram quatro encontros, muitos telefonemas e várias trocas de e-mail. Mais do que entrevistas, o que tivemos foram conversas. Eu tentava aprofundar alguns aspectos da vida dele, e ele contava. À medida que eu ia preparando um capítulo novo, eu mandava para ele, ele lia e me ligava: 'vamos acrescentar isso, corrigir aquilo, troque essa vírgula de lugar'. Isso aconteceu muitas vezes, até durante o verão, quando eu estava na praia. Ele me ligou e disse: 'Está com tempo de trabalhar um pouquinho? Então entra embaixo do guarda-sol e vamos trabalhar'.
Podemos dizer então que o livro é uma escrita compartilhada, com a sua voz e a de Francisco dividindo espaço nas páginas?
Sim. Era interessante dar o contexto no qual se desenvolvia a cena. Eu sou jornalista de TV, então eu imagino tudo em termos de imagem. Eu queria dar oportunidade às pessoas de ver, na imaginação, aquilo que está escrito, e dentro daquele contexto inserir as palavras do Papa: a maneira como ele conta cada cena e momento específico. Foi uma fórmula que encontramos, eu sugeri e ele gostou muito.
Como o Papa enxerga a própria vida? Ele é alguém que fala das memórias com pesar ou está bem resolvido com o passado?
É muito interessante ouvi-lo contar principalmente as anedotas de sua vida e as histórias de quando era padre jesuíta durante a ditadura de Videla, na Argentina, e os anos que morou em Córdoba, quando foi mandado para um exílio, punido. No primeiro caso, me chamou atenção o fato de que ele não se arrepende de suas ações, mas reparei que sofre muito quando fala da época de Videla, pelos jovens ‘desaparecidos’ pela ditadura e pelos próprios amigos que ele perdeu. Ele foi acusado de colaborar com a ditadura, e isso o feriu muito.
O que exatamente ele diz sobre o período da ditadura?
Ele fala sobre alguns episódios muito específicos, alguns em que colocou a vida de outras pessoas à frente da dele para tentar salvá-las. Ele disse que tinha certeza de que havia uma escuta telefônica em sua linha, e que tentava desviar a atenção [de um possível censor], falando coisas mais vagas. Ele aconselhou jovens sacerdotes a saírem em grupo e a não falarem muito, sobretudo com alguns capelães militares, porque temia que houvesse algum informante do governo. Ele diz ter certeza de que havia algum informante no colégio [Máximo, onde lecionou]. Outra história é de quando Esther [Ballestrino, amiga de Bergoglio e ativista comunista morta pelo regime] o chamou para falar que tinha livros de filosofia e marxistas, que se a pegassem com eles a matariam. Ele pega esses livros e os esconde no Colégio Máximo. Esses foram os momentos mais emocionantes para mim.
Quais as memórias mais surpreendentes sobre a juventude de Jorge Bergoglio? Quais delas explicam a decisão que o levou ao caminho do papado?
Ele contou muitas histórias da juventude e da infância. Ele lembra do fim da Segunda Guerra Mundial, quando há o anúncio do jornal de que acabou a guerra, e vê a mãe e a vizinha chorando de alegria. Ele diz que o gesto mostrou o quão importante era a paz, mesmo estando tão longe da guerra. Ali, ele teve sua primeira missão sobre o que é querer a paz. Outra anedota é de quando ele se tornou seminarista: no casamento de um tio, ele conheceu uma garota, que disse ser linda e inteligente, e teve uma 'paixonite'. Ele diz que não conseguia mais rezar, porque não conseguia parar de pensar nela. No final, a vocação prevaleceu.
Hoje, Francisco se entende um reformismo da Igreja Católica? Como ele avalia o próprio papado neste sentido?
Ele fala que tudo o que fez e está fazendo foi pedido pelos cardeais antes do conclave. Eles pediram por reformas para a Cúria romana, e foi isso que ele tentou realizar em seu pontificado. Ele tentou atender ao pedido dos cardeais de vários países e continentes, e quer que cheguem notícias de todas as partes do mundo, para que ele possa seguir adiante no pontificado e fazer o que precisa ser feito. Por isso ele colocou as reformas em primeiro lugar e é considerado um Papa reformador.
E o que o Papa fala sobre as disputas internas, principalmente com alas mais conservadoras da Igreja, que querem determinar os caminhos a serem trilhados pela instituição?
Conversamos sobre isso e eu cheguei a citar um exemplo, em que ele foi acusado de estar destruindo o próprio papado por meio de seus gestos. Ele me respondeu: 'Eu não posso acompanhar tudo o que as pessoas falam de mim, se não teria que ir ao psicólogo uma vez por semana'. Em conversas quase informais, falamos sobre as críticas ao papado, e o que ele sempre disse, muito serenamente, é que a Igreja é formada por muitas almas. Mas como há muitas almas, há muitos pontos de vista diferentes, e é justo que seja assim. Se há alguém que tem algo a criticar, que o faça publicamente e não às escondidas, pelas costas, porque aí seria uma facada. É assim que ele pensa.
Ele fez alguma avaliação sobre as decisões recentes de autorizar a bênção a casais não-regulares e homoafetivos e à maior participação de mulheres na Igreja?
Em uma parte do livro ele fala sobre a bênção aos casais homoafetivos e irregulares, e diz que é um gesto de abertura com essas pessoas, que no passado foram condenadas publicamente — um sentimento que não pertence à Igreja, que deve acolher e não julgar. Ele diz que entende que alguns bispos não estão de acordo, mas que não é motivo para cisma, porque não se toca na doutrina. Na minha opinião, o Papa entende muito bem que cada bispo terá a capacidade de discernir o que é justo a se fazer em seu rebanho, considerando aspectos culturais.
Como o Papa entende o próprio papel e o do Vaticano como parte da comunidade internacional, principalmente diante dos conflitos atuais?
Há dois canais neste sentido: a diplomacia do Vaticano, que desempenha um papel importante em chamar os líderes internacionais, sem lados, para promover negociações e fazer com que as partes voltem a se falar e discutir sobre o que precisa ser feito. Francisco, especificamente, se propôs várias vezes a ser mediador. Não é um papel com interesse geopolítico propriamente, porque o Vaticano não é um Estado como os outros. Mas o Papa, como uma autoridade moral, precisa lançar palavras e mensagens para que haja gestos da sociedade civil. Atualmente, a questão humanitária é fundamental para o Papa.
Ao longo do papado, Francisco ressaltou diferentes valores como virtudes importantes para a vida dos católicos, como a caridade e a oração. Ele destaca algum deles como fundamental em sua trajetória?
A oração é tudo na vida do Papa. Eu me dei conta disso quando estávamos juntos e eu organizava algumas coisas. Ele me disse: 'bom, enquanto você faz isso, estou aqui orando'. Oração é e sempre foi fundamental na vida dele. Ele diz que, infelizmente, as pessoas estão orando pouco, e é algo que ele pede no livro: que as pessoas orem mais, que há necessidade de mais oração no mundo, que a oração faz milagres e que o que precisamos hoje é de um milagre para que as coisas mudem.
O Papa entra no 12º ano de papado e está perto dos 90 de vida. Qual a visão dele para o futuro?
Eu acho que ele ainda tem muitos projetos, porque ele ainda mergulha com muito entusiasmo no que ele pretende fazer. Isso me mostra que ele não está pensando em deixar o pontificado, muito pelo contrário. Eu o perguntei sobre a visão que ele tem para a Igreja no futuro. Ele disse: 'Eu espero que seja uma Igreja com muita compaixão, ternura e distante dos vícios, porque infelizmente tem um vício, o clericalismo, que é uma peste. Pode ser uma Igreja menor, mais pobre, mas com a consciência tranquila de ser uma Igreja pura, verdadeira'.
E qual é o maior temor do Papa Francisco?
Não falamos de medo, de temor. Mas eu reparei que ele tem um cuidado com o fato de que as pessoas rezam pouco. Não sei se é medo, mas é uma preocupação. Notei uma segunda preocupação quando o perguntei sobre o futuro da humanidade. Ele diz que o mundo está em guerra desde 1914, e que isso significa que ou vai ter vida e paz ou morte. Ele diz: 'Vamos nos esforçar para ter paz, e não morte'.