Conselho de Segurança da ONU: Entenda por que Rússia e China vetaram resolução dos EUA sobre guerra
Redação do texto final, rivalidade histórica e contexto geopolítico estão por trás da não aceitação da proposta americana por Pequim e Moscou
A Rússia e a China vetaram, nesta sexta-feira (22), o projeto de resolução sobre a guerra entre Israel e Hamas na Faixa de Gaza, apresentado pelos EUA ao Conselho de Segurança da ONU. A proposta, levada a votação no órgão com sede em Nova York, recebeu 11 votos a favor, três contra e uma abstenção — sendo bloqueada, apesar da maioria favorável, em razão do poder de veto de Moscou e Pequim.
A resolução americana se dirigia à necessidade de um "cessar-fogo imediato e sustentado" com o objetivo de proteger civis, permitir assistência humanitária e aliviar o sofrimento humano em Gaza, estabelecendo como ação o apoio a "esforços diplomáticos para garantir tal cessar-fogo em conexão com a libertação de todos os reféns restantes". Washington afirma que a redação foi fechada após consultas a outras delegações no âmbito do conselho.
O texto final, contudo, foi alvo de críticas severas de Rússia e China, que se referiram à proposta como "ambígua", "inaceitável" e "hipócrita". Tanto o representante de Pequim quanto o de Moscou lembraram que os EUA vetaram resoluções recentes que propunham o cessar-fogo em Gaza e a liberação dos reféns, condenando a demora de Washington para acompanhar o entendimento da maioria sobre a urgência do fim do conflito e a linguagem escolhida para o documento, que não determinaria os meios para uma trégua, de forma clara.
— Todas as tentativas [de cessar-fogo], uma vez após a outra, sofreram resistência dos EUA, que por quatro vezes, a sangue frio, impuseram um veto nesta Câmara — afirmou o embaixador russo, Vassily Nebenzia, antes de recomendar o veto ao conselho. — Passados 6 meses, Gaza foi virtualmente varrida do mapa, e agora a representante dos EUA, sem pestanejar, nos garante que Washington reconhece a necessidade de um cessar-fogo.
Nebenzia, assim como o embaixador chinês, Zhang Jun, apontaram que o texto não apela, de forma direta, pelo fim das hostilidades em Gaza, e que foi escrito de uma forma que permitiria interpretações perigosas ao estabelecer contrapartidas para que haja uma trégua definitiva, o que poderia ser lido como um incentivo a ações militares israelenses contra o enclave palestino, incluindo Rafah.
— A proposta [americana] passou por várias iterações e contém elementos que respondem a preocupações da comunidade internacional, mas sempre se eximiu da questão central de um cessar-fogo — declarou Jun. — Um cessar-fogo imediato é um pré-requisito fundamental para salvar vidas, expandir o acesso a ajuda humanitária e prevenir conflitos maiores. O projeto americano, pelo contrário, estabelece pré-condições para um cessar-fogo, o que não é diferente de dar um sinal verde para a continuidade da matança, o que é inaceitável.
Teor geopolítico
A embaixadora americana, Linda Thomas-Greenfield, chamou a postura das delegações russa e chinesa de "cínica", descartando que apenas os tecnicismos levantados pelas delegações estivessem por trás da decisão. A diplomata vinculou os vetos de ambos à oposição histórica aos EUA.
— China e Rússia simplesmente não quiseram votar a favor de um projeto elaborado pelos Estados Unidos, porque prefeririam ver-nos fracassar do que ver o Conselho ter sucesso — disse.
Embora China e Rússia mantenham uma posição quase avessa aos EUA dentro do conselho, a disputa atual vai além de uma questão de semântica, e reflete uma série de outros embates geopolíticos — em que Pequim, Moscou e Washington manifestam interesses estratégicos concorrentes, incluindo alguns específicos no Oriente Médio e outros mais gerais.
Tradicionalmente uma zona de influência — e área de operação — americana, o que acontece no Oriente Médio ressoa rapidamente nos EUA, que tem uma política externa longa na região. Para analistas políticos, Pequim e Moscou tentam tirar proveito do conflito em Gaza, que ao implicar Israel também envolve os EUA, ao menos na medida em que retira a atenção de Washington de outras frentes, como a guerra na Ucrânia ou as disputas estratégicas no Pacífico e no Mar do Sul da China.
Em um artigo publicano em janeiro pelo The New York Times, os pesquisadores no Carnegie Endowment for International Peace Isaac Kardon e Jennifer Kavanagh, avaliaram como o comportamento distante da China em relação à crise no Mar Vermelho, envolvendo os rebeldes houthis e a coalizão internacional liderada pelos EUA, revelam o interesse chinês no desgaste americano.
"Pequim joga um jogo cínico, aproveitando-se da mesma potência americana que despreza, tentando ter as duas coisas. Para os líderes da China, há uma certa lógica estratégica nisto. A crise do Mar Vermelho distrai os Estados Unidos de se concentrarem na Ásia, dando à China tempo para mobilizar as suas capacidades no Pacífico ocidental, ao mesmo tempo que se apresenta como uma potência benevolente que não se intromete nos assuntos de outros países", escreveram.
Além da abordagem indireta, China e Rússia guardam objetivos próprios de expandir suas zonas de influência na região. Os dois países foram apontados como os responsáveis por articular a entrada de Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes Unidos e Irã no Brics, no ano passado — o último deles, principal elo direto de ambos com o conflito em Gaza.
O regime de Teerã é apontado como o principal fornecedor de armamentos e líder ideológico do grupo chamado 'Eixo da Resistência', que reúne grupos e movimentos armados da região, muitas vezes apontados por fontes ocidentais como agentes por procuração das forças iranianas, incluindo o Hamas.
Escanteados pelo Ocidente: Rússia, Irã e Coreia do Norte reforçam laços mútuos
Parte dos analistas apontam que a relação com o Irã — sobretudo da Rússia, que encontrou no país um importante fornecedor de drones para a ofensiva na Ucrânia — seria um dos fatores a influenciar a decisão dos países de manterem uma postura pró-palestina. Nem China e nem Rússia, fontes importantes para as trocas comerciais com o Irã, pressionaram o país de forma aberta por uma solução.
A postura menos ativa no conflito, mantendo a linha mais voltada para Gaza, também parece atender ao objetivo de ambos em relação ao Sul Global, onde a causa Palestina tem mais força e reúne apoiadores.