MARIELLE FRANCO

Caso Marielle: investigação joga luz sobre corrupção na Polícia Civil do Rio de Janeiro, aponta PF

Apuração da Polícia Federal mostra envolvimento de delegados e policiais com milícias e contraventores, em um sistema que conectava a polícia à criminalidade do estado

Marielle Franco - Foto: Renan Olaz/AFP

A investigação da Polícia Federal para identificar os mandantes dos assassinatos da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes esbarrou em uma série de informações que indicam um cenário de corrupção dentro da Polícia Civil do Rio de Janeiro.

A apuração mostra que para além do envolvimento do delegado Rivaldo Barbosa, ex-chefe da Polícia Civil do estado, que teria atuado para obstruir as investigações, havia um sistema que conectava a polícia à criminalidade do RJ.

Um procedimento instaurado pelo Ministério Público do RJ, por exemplo, apurou indícios de que Barbosa, enquanto delegado titular da Delegacia de Homicídios, recebia vantagens da contravenção para não investigar os homicídios por eles praticados, decorrentes das disputas territoriais para exploração do jogo do bicho. Esta apuração foi compartilhada com a PF.

Uma das figuras ouvidas pela Polícia Federal foi o miliciano Orlando Curicica, que chegou a ser implicado no começo da apuração do caso Marielle. Segundo a PF, Rivaldo Barbosa atuou para incriminar o ex-vereador Marcello Siciliano e Curicica a fim de obstruir as investigações. Em depoimento, o miliciano falou sobre uma série de episódios que levantam suspeitas de corrupção na Delegacia de Homicídios em gestões passadas.

Ele relatou que já foi extorquido por Rivaldo para que um crime de porte de arma de fogo não fosse imputado à sua mulher. Segundo ele, havia um esquema de pagamento de mensalidade feito por milícias a algumas delegacias do Rio de Janeiro. A Delegacia de Homicídios, de acordo com Curicica, recebia mensalmente entre R$ 60 mil e R$ 80 mil. Se houvesse alguma “remessa adicional em razão dos crimes que deixavam provas”, as milícias tinham que pagar valores a mais.
 

"A contravenção criou um sistema que facilitou a morte da Marielle. Delegacias (...) ganham R$ 40 mil por mês da contravenção. A DH [Delegacia de Homicídios], as especializadas, ganham mais que varia entre 60 a 80 mil por mês. Na DH, além do que eles recebem mensal, quando entra um homicídio que deixou uma filmagem, deixou um rastro que eles conseguem direcionar o homicídio para determinado contraventor, eles pagam por fora", disse Curicica em depoimento.

De acordo com ele, a delegacia em questão recebeu R$ 300 mil de uma pessoa ligada ao bicheiro Rogério de Andrade “para não ‘perturbar’” os prováveis envolvidos no homicídio do policial militar Geraldo Antônio Pereira, que foi citado na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Milícias, na Assembleia Legislativa do RJ, como um dos integrantes de um grupo paramilitar que atuava em Curicica.

Em nota, a Polícia Civil afirmou que a declaração do miliciano, "por si só, tem pouco ou nenhum crédito se não tiver outros elementos que corroborem as afirmações". "Vale ressaltar que o criminoso é líder de uma milícia e foi preso pela Delegacia de Homicídios por crime desta natureza. Logo, ele tem todo o interesse de desqualificar o trabalho da unidade", pontuou.

A investigação da PF cita ainda o delegado da Polícia Civil William Pena, dizendo que ele foi segurança do conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio (TCE), Domingos Brazão, apontado como um dos mandantes da execução de Marielle e de Anderson. A PF afirma que a confraternização da formatura da turma de Pena na polícia “teria acontecido em uma propriedade dos Brazão”.

Pena também foi sócio, segundo a polícia, do assessor de Domingos, Robson Calixto (conhecido como Peixe), citado pelo ex-policial militar Ronnie Lessa como um dos intermediários do crime contra Marielle e Anderson. Lessa foi preso em 2019 e é apontado como o executor do crime.

A PF destaca que Pena já usou uma aeronave que pertence a um empresário sócio de um homem tido como "clonador de cartões de crédito". Este homem, por sua vez, já respondeu a processo ao lado do ex-companheiro da viúva de Adriano Nóbrega, morto em 2020 na Bahia, em uma ação registrada como confronto contra a polícia. O capitão Adriano foi denunciado pelo Ministério Público do Rio por comandar o chamado "Escritório do Crime", grupo de matadores de aluguel.

As declarações revelam a mistura de admiração e temor que muitos policiais fluminenses demonstram ainda hoje pelo "Capitão Adriano". O Ministério Público do Rio denunciou o ex-PM por comandar uma milícia na zona oeste do Rio e o chamado "Escritório do Crime", grupo de matadores de aluguel que tem como clientes preferenciais chefes do jogo do bicho carioca.

Na viagem feita por ele neste avião, foi também o delegado Moyses Santana Gomes, que já foi titular da Delegacia de Homicídios e chegou a chefiar as investigações sobre o caso Marielle.

Gomes disse se lembrar da viagem, mas negou que soubesse das relações de sociedade do dono do avião. O delegado afirmou, ainda, que jamais enfrentou pressão para direcionar as investigações do caso Marielle.

– Na minha gestão não houve nada. Indiciamos o Lessa e já tínhamos a linha de vinculação do Lessa com os Brazão – disse. Segundo o delegado, que é amigo de Pena, o nome de Rivaldo nunca passou pelo seu “radar”.

– Rivaldo apareceu só com a delação. Depois da delação é muito fácil apontar. Mas, antes disso, não tinha nenhuma situação que pudesse nos fazer suspeitar em relação a ele. Lembrando que eu só assumi o caso três anos depois do homicídio – afirmou, pontuando que o envolvimento de Rivaldo o surpreende.

O delegado William Pena, por sua vez, nega ter sido segurança de Brazão ou de qualquer outra pessoa, e disse que não possui qualquer relação de amizade com a família.

-- Conheço, mas não possuo amizade íntima. Mas estamos no Rio, local aonde todos se esbarram em festas, shoppings -- disse.

Sobre a festa de formatura, afirmou que foi em uma casa de eventos, e que tudo foi organizado pela comissão de formatura. Pena disse que já usou um sítio em Jacarepaguá de propriedade da família Brazão para fazer festas, mas justificou que na época “bastava entrar na lista de espera para fazer algum evento”.

Já em relação a Robson Calixto, o delegado afirmou que o conheceu em 2001, quando ainda estudava Direito.

– Fomos concunhados e até hoje temos amizade. É óbvio que nunca sequer perguntei ou cogitei a participação dele nesse tipo de delito – pontuou.

Sobre a viagem a Noronha, Pena explicou que é amigo do dono da aeronave e do sócio, mas que jamais pediu a ele, “ou qualquer outro amigo, a ficha de antecedentes criminais”.

“Esquema de corrupção”
Depoimento de um delegado que atuou na Delegacia de Homicídios corroborou “com os indicativos de existência de um esquema de corrupção no cerne” do local, ressaltou a PF. O delegado da Polícia Civil Brenno Carnevale, que investigou o assassinato do ex-policial militar Marcos Falcon, narrou no âmbito de uma investigação do MP-RJ que, dentre as situações “estranhas” vivenciadas por ele na delegacia, estão o sumiço de inquéritos, "de materiais apreendidos, excesso de exigências burocráticas que inviabilizavam diligências importantes e súbitas trocas de presidências de inquéritos”.

Conforme a PF, existem “indícios da existência de uma organização criminosa – enraizada no seio da Delegacia de Homicídios da Capital, composta por agentes públicos que, mediante suas condutas ‘omissivas’ (em não apurar crimes) e ‘comissivas’ (pelo direcionamento consciente e voluntário de atos de investigação para focos diversos da realidade), permitem a manutenção do esquema criminoso envolvendo contraventores e milicianos”.