Referência mundial, cinema argentino luta contra cortes e está em alerta; entenda
Produtores, diretores e atores do país tentam driblar crise acirrada pela 'serra elétrica' do novo governo
O cinema argentino, com sua respeitável projeção internacional construída ao longo de 120 anos, está em estado de alerta. Nas últimas semanas, foram realizados protestos e assembleias para discutir a crise que assola um setor fortemente afetado pela serra elétrica do governo de Javier Milei.
Desde que o chefe de Estado incluiu cortes no Instituto Nacional de Cinema e Artes Audiovisuais (INCAA) no chamado projeto de Lei Ônibus, enviado ao Congresso em dezembro e derrubado semanas depois, produtores, diretores, roteiristas e atores, entre outros, decidiram enfrentar o governo, visto como uma ameaça para o futuro do cinema nacional.
O projeto de lei morreu na praia, mas outras medidas foram incluídas num decreto presidencial e um novo projeto de lei está sendo discutido no Congresso. Com este pano de fundo, nasceu o grupo Cinema Argentino Unido.
Ao anunciar os ajustes no INCAA, o Ministério do Capital Humano informou sobre reduções orçamentárias e demissões de servidores e antecipou o provável cancelamento de festivais de cinema, entre eles o de Mar del Plata, que acontece todos os anos desde 1954. “Nosso compromisso com zerar o déficit (fiscal) é inegociável. Acabaram os anos em que se financiavam festivais de cinema com a fome de milhares de crianças”, diz a nota do ministério.
Um dos que rebateram com contundência o governo de Milei ao cinema foi o ator Ricardo Darín: “Acreditar que o que está acontecendo em nosso país há décadas, com a deterioração da educação, do trabalho real, a quantidade de pessoas que está abaixo da linha da pobreza, coisas lamentáveis, horrorosas, depende de um setor, do setor artístico, é um delírio. Simplesmente um delírio”, disse ele em entrevista ao jornal Clarín.
O Ministério das Relações Exteriores cortou, entre muitas outras coisas, o orçamento do Programa Sur, dedicado a traduzir obras de autores argentinos para promover a cultura nacional no restante do mundo. O programa contava com US$ 300 mil anuais até a chegada de Milei ao poder, e agora, comentou a escritora e roteirista Claudia Piñeiro, tem apenas US$ 30 mil:
"O que Milei faz com a cultura é como dizer “não vou te matar de fome, mas vou tirar sua comida”. Isso é o que está acontecendo com toda a cultura nacional, os riscos são enormes", comenta ela, para quem Milei está destruindo um patrimônio incalculável, em termos de cultura e prestígio da Argentina no mundo.
O governo deu fim a contratos do INCAA, reduziu remessas a governos provinciais que financiavam o cinema nacional e promete continuar avançando com a serra elétrica. O INCAA, além de financiar o cinema nacional, tem uma escola de cinema, organiza festivais e administra alguns cinemas, entre eles o Gaumont, um dos mais antigos de Buenos Aires, que Milei pretende fechar.
Representantes do setor esclarecem que o orçamento do instituto, que Milei afirma que deve ser equilibrado, é financiado, em grande medida, pela própria produção cinematográfica nacional. A principal fonte de financiamento do INCAA é o Fundo de Fomento Cinematográfico, criado em 1994. Esse fundo recebe 10% do valor de cada ingresso do cinema e outras contribuições vinculadas à produção. Em 2022, segundo o site Chequeado, 80% do orçamento do INCAA vieram desse fundo.
"Os problemas do cinema argentino são anteriores a Javier Milei. Temos um mercado que não é suficiente para pagar o custo de fazer cinema no país. Na verdade, ninguém pede mais dinheiro ao Estado, mas, sim, incentivos para produzir", diz o produtor Axel Kuschevatzky, que tem em sua trajetória filmes que brilharam em festivais internacionais como “O segredo de seus olhos” e “Argentina, 1985”.
Para ele, “o cinema gera postos de trabalho e não fome”:
— O discurso do governo distorce a realidade e constrói imagens falsas. Falta um diálogo adulto sobre como gerar um modelo mais virtuoso para o cinema argentino.
Kuschevatzky, que há cinco anos mudou-se para Los Angeles, diz que está ficando cada vez mais difícil conseguir sócios estrangeiros para fazer filmes na Argentina. Faltariam incentivos e vantagens competitivas.
‘Modelo como o soviético’
Na opinião do documentarista Fernando Krichmar, “o problema de Milei com o cinema não é econômico e sim ideológico”.
"O cinema é um ecossistema no qual todos ajudam a todos. A Argentina faz entre 200 e 250 filmes por ano, dos quais em torno de 44% são documentários. Esses documentários circulam em escolas, sindicatos, plataformas, e, juntos, geramos 600 mil postos de trabalho por ano", comenta.
Para o documentarista, “o modelo de Milei é similar ao dos soviéticos, que fizeram poucos filmes e sempre com total controle do Estado”.