GUERRA NO ORIENTE MÉDIO

Fome em Gaza deixará crianças palestinas com sequelas para toda a vida, alertam especialistas

Segunda a organização Oxfam, moradores do norte do território consomem apenas 245 por dia; desnutrição já matou 28 menores, segundo o Ministério da Saúde do enclave

Fila para comida em Gaza - Mohammed Abed/AFP

Em quase seis meses de guerra, a fome é iminente na Faixa de Gaza, e mais de 1,1 milhão de pessoas podem enfrentar seu nível mais severo nos próximos meses, segundo relatório divulgado em março pela iniciativa global de Classificação Integrada das Fases de Segurança Alimentar (IPC, em inglês). Mortos por desnutrição já são realidade: 28, segundo o Ministério da Saúde e Gaza, citado pelo Escritório de Coordenação de Assuntos Humanitários da ONU (Ocha) — todos crianças. Aqueles que sobrevivem tampouco sairão ilesos, levando sequelas para toda vida.

Segundo a conselheira sênior do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), Anuradha Narayan, citada pelo Washington Post, mais de 90% das crianças pequenas, grávidas e lactantes em Gaza sobrevivem diariamente com dois ou menos grupos alimentares, como o pão. Antes, costumavam ter acesso a mais proteína, frutas e vegetais fresco, além de leite. De acordo com a organização Oxfam, moradores do norte do território consomem apenas 245 por dia.

Os micronutrientes são essenciais para o desenvolvimento infantil. Sem vitamina A, encontrada em peixes, vegetais e ovos, as crianças podem desenvolver problemas de visão, enquanto a falta de zinco dificulta o ganho de peso. A falta de ferro afeta a energia e a capacidade de concentração.

Médicos e especialistas ouvidos pelo Post explicaram que as crianças que sobrevivem à falta de alimentos — além do cenário perturbado por bombardeios, doenças e traumas psicológicos — terão problemas para desenvolver completamente seus cérebros e corpos, resultando em baixa estatura, organismos fisicamente mais fracos e até dificuldades para aprender no futuro. Ou seja, quanto mais jovem, maior o impacto.

— No nível mais simples, se você tem nutrição e crescimento prejudicados, seu cérebro para de crescer — explicou o médico e presidente de saúde infantil global no Hospital para Crianças em Toronto, no Canadá.

Por que crianças são mais atingidas?
O corpo humano obtém energia através do processamento da glicose — obtida em carboidratos — pelo fígado. Essa substância, então, é enviada para todas as partes do corpo, especialmente para o cérebro. Quando não há glicose para ser sintetizada, o organismo começa a tirar energia da gordura. Mas, quando ainda assim não há de onde tirar energia, o corpo começa a queimar proteínas dos músculos.

No caso das crianças, explicaram os especialistas, o processo é ainda mais rápido, já que elas têm menos reservas e precisam de mais energia para crescer. Os músculos, como consequência, começam a encolher, e os órgão param de funcionar adequadamente. O corpo já não regula a temperatura normalmente, a pele fica pálida e as gengivas começam a sangrar. O sistema imunológico também fica debilitado, perdendo a capacidade de cicatrização e de combater infecções, como a diarreia — o que agrava ainda mais o quadro de desnutrição.

Nas crianças, o sistema disgestivo é o primeiro a colapsar, provocando perda de apetite e o encolhimento do estômago, entre outros. E quando os alimentos voltam a estar disponíveis, devem ser introduzidos gradualmente, de preferência em um ambiente hospitalar.

O coração também encolhe, o que diminui o fluxo sanguíneo, frequência cardíaca e a pressão arterial. O órgão também pode falhar.

Com problemas na circulação sanguínea, o sistema respiratório também começa a apresentar falhas: a respiração fica mais lenta, e a capacidade pulmonar diminui.

O cérebro começa a receber pouco sangue, pouco oxigênio e nutrientes, e a criança começa a apresentar sinais de apatia, exaustão e irritabilidade.

Os profissionais alertam que os recém-nascidos, por sua vez, podem morrer devido ao baixo peso ao nascer. Aqueles que sobrevivem também enfrentam riscos graves associados à desnutrição.

Futuro em risco
Quem sobrevive tampouco sai ileso. Na fase adulta, as crianças palestinas que hoje sofrem com a desnutrição terão problemas com oportunidades educativas e para servir de mão de obra.

— A fome numa guerra como esta é um massacre em câmara lenta — afirmou o diretor executivo da Fundação para a Paz Mundial da Universidade Tufts e autor de “Fome em Massa: A História e o Futuro da Fome”, Alex de Waal ao Post.

Gaza está sob "cerco total" imposto por Israel há quase seis meses. A medida acarretou na redução drástica de caminhões com ajuda humanitária que entram diariamente no enclave — apenas 105 veículos frente aos cerca de 500 que costumavam entrar. Dois pontos para entrada desses comboios foram abertos nos últimos meses, Kerem Shalom, no norte, e Rafah, no sul de Gaza. Na quinta-feira, Israel anunciou, sob pressão dos EUA, a abertura temporária de mais um posto fronteiriço na região.

Em entrevista à BBC na semana passada, o mais alto funcionário de direitos humanos das Nações Unidas, Volker Türk, afirmou que o Estado judeu tem uma culpa significativa nessa crise, existindo uma possibilidade "plausível" do país usar a fome como arma de guerra. A ONG Human Rights Watch (HRW) já havia denunciado em dezembro o uso desse mecanismo por Israel, que rebateu, afirmando que a organização é "antissemita e anti-israelense".