Decisão de Musk de não cumprir ordens do STF é afrontar soberania nacional, dizem especialistas
Analistas defendem que, se o empresário discorda das decisões tomadas pela Justiça brasileira, ele deveria recorrer aos órgãos competentes e questioná-las democraticamente
As decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em investigações sobre ataques à democracia brasileira nos últimos anos têm pontos controversos, mas postura de Elon Musk de desrespeitar ordens judiciais é afronta à soberania nacional.
A avaliação é de especialistas ouvidos pelo Globo após Musk, dono do X (antigo Twitter), afirmar que iria suspender todas as restrições impostas pela Corte a usuários da rede social que tinham sido bloqueados por determinação judicial.
No fim de semana, Musk partiu para cima do ministro do STF Alexandre de Moraes ao defender que ele "renunciasse ou sofresse impeachment". A ofensiva do empresário veio após a publicações do jornalista americano Michael Shellenberger que apontavam supostas violações da liberdade de expressão no Brasil em razão de exigências de Moraes à plataforma.
Desde então, Musk tem feito acusações sobre o Supremo. Afirmou que Moraes "aplicou multas pesadas, ameaçou prender nossos funcionários e cortou o acesso do X no Brasil".
"O X vai publicar tudo o que foi exigido por Moraes e como esses pedidos violam a lei brasileira. Esse juiz tem descaradamente e repetidamente traído a constituição e o povo brasileiro", escreveu Musk na rede social.
Mas analistas defendem que, se o empresário discorda das decisões tomadas pela Justiça brasileira, ele deveria recorrer aos órgãos competentes e questioná-las democraticamente.
— Se houve algum desrespeito à Constituição e ao Marco Civil, o foro competente para esse questionamento é o próprio Judiciário, ou que se leve ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Declarar que não irá cumprir a lei ou decisões judiciais é afrontar a soberania nacional e potencialmente colocar em risco os direitos de cidadãos brasileiros em diversos níveis — diz Yasmin Curzi, pesquisadora do Centro de Tecnologia e Sociedade e professora na FGV Direito Rio.
Questionada sobre a acusação feita por Musk de que Moraes teria desrespeitado o Marco Civil da Internet e a Constituição Federal do Brasil, Yasmin diz que a legislação do país prevê a suspensão de conteúdo quando existir receio fundamentado de dano irreparável em relação a ele.
Para ela, a liberdade de expressão, protegida constitucionalmente, não está acima de outros direitos nem abrange a circulação de conteúdo que viole outros direitos. E critica a visão de Musk sobre o que seria liberdade de expressão, bandeira a que ele tem recorrido ao atacar Moraes.
— Me parece que há uma dificuldade de Musk em compreender que a liberdade de expressão absoluta, como prevista na primeira emenda dos Estados Unidos, não é o regime geral para todos os países. Não se trata de justificar abusos ou a ausência de consequências para o arbítrio. Mas temos mecanismos de controle das decisões — diz ela.
Professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS), Carlos Affonso Souza diz que as revelações da troca de e-mails entre funcionários do Twitter — relatando que autoridades brasileiras requereram informações pessoais sobre usuários investigados no país, e que motivaram os ataques de Musk — mostram inconformidades nos pedidos de acesso a dados em relação ao que prevê o Marco Civil da Internet, como alguns pedidos de acesso a dados. Mas Souza segue a linha de Yasmin e defende que eventuais questionamentos devem ser feitos legalmente, ao próprio Judiciário.
Entre as ações mais criticadas de Moraes no âmbito dos inquéritos sob seus cuidados no Supremo estão, por exemplo, a de investigar seis empresários que discutiam, em um grupo de WhatsApp, um suposto golpe caso o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva vencesse as eleições de 2022, e o bloqueio dos perfis do PCO nas redes sociais, por supostos ataques à democracia. A própria origem dos inquéritos, abertos de ofício, foi alvo de críticas de juristas.
Souza diz que a atitude de Musk "consagra um movimento político do seu dono, (que) parece querer usar o caso brasileiro para impulsionar uma visão política". Para o professor, o bilionário passou a desprestigiar os esforços de moderação de conteúdo, menosprezar as demandas da imprensa e reabilitar contas conhecidas por espalhar desinformação e fazer ataques.
— Por mais que possam existir exageros nas ordens direcionadas à plataforma, não é dado à agentes particulares decidirem cumprir ou não ordens judiciais — afirma.
Para especialistas, Musk está puxando a corda ao confrontar o STF e sugerir que sua rede social em breve será bloqueada por Moraes. Na noite do domingo, o empresário passou a orientar aos usuários que baixassem aplicativos que fornecem serviço de rede VPN, pela qual seria possível ter acesso a serviços bloqueados em uma região.
Para Francisco Brito Cruz, diretor-executivo do InternetLab, se Musk suspender as restrições impostas pelo STF, como bloqueio de contas, a resposta "será dura".
— O Brasil tem um histórico de não se resignar e de comprar as brigas com empresas de internet que resolvem bater de frente. Ao que parece a briga vai escalar, com consequências importantes para usuários que não têm nada ver com isso. A repercussão do episódio pode até reaquecer o debate regulatório — diz ele, referindo-se à aprovação do PL 2630, que cria responsabilização das plataformas digitais por conteúdo criminoso.
Na noite do domingo, os bloqueios de contas impostos por Moraes no âmbito dos inquéritos sobre milícias digitais e atos antidemocráticos continuavam, apesar da promessa de Musk de suspendê-los. Mas a ameaça foi suficiente para o ministro abrir uma investigação contra o empresário e determinar uma multa diária de R$ 100 mil caso o X descumpra ordem judicial.
Para Carlos Affonso Souza, o Brasil precisaria contar com cooperação jurisdicional penal com os Estados Unidos para fazer valer qualquer determinação contra Musk. O acordo de cooperação já existe, diz ele, mas os EUA têm se mostrado resistentes a demandas brasileiras que tratem de liberdade de expressão.
— Foi como vimos no caso do Allan dos Santos (em que os EUA negaram sua extradição). É mais provável que medidas sancionatórias recaiam sobre a empresa no Brasil e eventualmente em seus representantes locais, como já visto em outras oportunidades, não estando essas medidas isentas de controvérsias, claro — afirma ele.