INSPIRAÇÃO

Velhice abre novo horizonte de possibilidades: veja histórias de idosos que se reiventaram

Vida depois dos 60 anos deve ampliar busca por realizações pessoais e não ser encarada como momento de estagnação

Perto de completar 70 anos, Lula Holanda comanda um dos maiores grupos de corrida da cidade - Walli Fontenele / Folha de Pernambuco

Bingo, crochê e hidroginástica. Para a maioria da sociedade, essas são as atividades que devem preencher uma vida depois dos 60 anos. A ideia de que a velhice deve ser um momento de estagnação é um senso bastante comum para muitas pessoas. O período, embora ofereça a chance de descansar com a eventual aposentadoria, não deve ser considerado como uma fase de afastamento da rotina e dos hobbies que existiram durante toda a juventude e outras fases da vida adulta.

Rossana Rameh, psicóloga, explica o perigo de se limitar apenas aos interesses tidos como “próprios para a terceira idade” ou vistos como “coisa de velho” e deixar de lado as realizações pessoais e os verdadeiros desejos.

“Existe uma estereotipia quanto a função do idoso na sociedade, isso acaba limitando essas pessoas para que elas realizem atividades consideradas exclusivas para idosos, as isolando do restante da vida”.

Depressão

Não por acaso, são os idosos que lideram o ranking dos mais afetados pela depressão no Brasil. Segundo dados do Ministério da Saúde, a prevalência geral de depressão entre idosos no Brasil está em torno de 20% a 30%. Isso significa que aproximadamente 1 em cada 5 ou 3 em cada 10 idosos no país podem ser afetados em algum momento da vida. 

Entre os principais gatilhos está o sentimento de inutilidade provocado pelo abandono das atividades cotidianas. “É preciso que exista esse senso de propósito e de busca de uma meta. Assim, a pessoa pode manter uma conexão social e buscar algum tipo de realização social ainda nesta nova fase da vida, encarando o envelhecimento como um novo horizonte de possibilidades e não como o final”, ressalta Rameh.

Sem parar 

Maria Ceci de Melo Alencar, ou apenas Ceci, como prefere ser chamada, é uma das pessoas que decidiu não seguir a tradicional cartilha das atividades obrigatórias do envelhecimento. Aos 77 anos, embarca na quarta pós-graduação enquanto planeja o lançamento de um romance ainda neste ano.

“Acho que a vida é perene enquanto dura e o desafio é o fogo para se viver”, destaca. 

Filha de família pobre, cresceu sem acesso ao objeto principal de sua paixão, os livros. O primeiro contato com a literatura foi por meio dos cordéis, que tinham valores mais acessíveis. 

Com dificuldade, ao longo da juventude conseguiu estudar e fazer magistério em São José do Egito, no Sertão de Pernambuco, onde tomou gosto pela prática da leitura. Foi laureada, nomeada professora efetiva do Estado e veio a lecionar no Recife. 

Apaixonada por livros, Ceci planeja escrever seu primeiro romance ainda em 2024. Ricardo Fernandes/ Folha de Pernambuco

Na capital, cursou enfermagem na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) enquanto seguia com as atividades em sala de aula, ensinando na rede pública. Finalizou o curso, coordenou projetos estaduais quando foi assessora especial do governador Miguel Arraes e finalizou três pós-graduações em saúde, a última pela Fiocruz.

Agora, o quarto mestrado será inteiramente dedicado à paixão literária. “Tenho três livros de poesia publicados e sempre pensei em escrever um romance. Um amigo me informou sobre um mestrado e não tive dúvidas em ir, pois não vejo limites para estudar”.

Para Ceci, a vontade é de aprender sempre mais, conhecer novas pessoas e ampliar os horizontes.

“Sou muito confiante em meus projetos, sempre fui. Acho que o impacto para o envelhecimento é positivo, talvez rejuvenesça. Minha autoestima sempre está em alta, porém sou uma pessoa simples, bem real”, finaliza.

Novo olhar

Para a especialista em gerontologia e coordenadora do Núcleo de Envelhecimento, Velhice e Idosos da Universidade Federal Rural (UFRPE), Nayana Pinheiro, o problema da estereotipação dos mais velhos como pessoas inválidas é estrutural, ligado a uma “cultura de desvalorização das pessoas idosas e de valorização do novo, do belo, do forte”.

As raízes desse pensamento, segundo Pinheiro, são reflexo da cultura ocidental e do modelo de sociedade que valoriza apenas os corpos que ainda podem produzir capital. “A forma como as pessoas que envelhecem são vistas, tratadas e incluídas na sociedade é fruto de uma construção social. Insistimos em manter uma visão ultrapassada que associa a velhice e às pessoas idosas à doença, limitações e inutilidade”, destaca.

A desconstrução dos estereótipos é um desafio que deve começar pelo “rompimento da falsa máxima que associa velhice a doenças e limitações”, enxergando esse grupo com mais positividade. 

Caminhos

Lula Holanda começou a correr aos 50 anos para sair da depressão após uma demissão. Hoje, perto de completar 70, já completou 81 mil quilômetros corridos, número que resulta em duas voltas completas ao redor do globo terrestre. 

“Acordo às quatro da manhã e corro entre 5 e 20 quilômetros todos os dias. A corrida me restaurou, eu era sedentário e com 19 kg a mais. Me envolvi de uma maneira que isso me fez um bem incrível e parei de pensar em complicações da vida”, desabafa.

O gosto pela atividade fez com que Lula criasse um dos maiores grupos de corrida do Recife, o Amigos Corredores da Jaqueira (Acorja), que hoje reúne mais de 280 membros de todas as idades que correm diariamente no Parque da Jaqueira.

O total de quilômetros percorridos por Lula já somam duas voltas ao redor do globo terrestre. Walli Fontenele / Folha de Pernambuco

Depois de correr em mais de seis países fora do Brasil, incluindo a icônica Maratona de Boston, os planos para o futuro são grandes. Com a chegada do aniversário de 70 anos, Lula planeja correr 10 voltas diárias durante 7 dias no Parque da Jaqueira, Zona Norte do Recife, lugar que adotou como sua casa da corrida. Depois disso, vai se preparar para o aniversário de 100 anos da São Silvestre, será a terceira vez que ele fará a corrida. 

“Nunca é tarde, minha filosofia de vida e o grito de guerra do Acorja é: eu quero, eu posso e eu consigo. A partir do momento que você pensar isso, sua mente vai mudar. Tenha fé para acreditar em você mesmo, força para ir à luta e foco para mensurar o que quer fazer com suas metas”.

Memória

A escolha de viver uma velhice de maneira plena e disposta é um caminho sem arrependimentos para Audicéa Bandeira, que resolveu seguir a paixão pelo Carnaval aos 67 anos, quando se tornou passista e, logo depois, coralista do Bloco das Flores. 

“Morei em Brasília por muitos anos e sempre tive saudades do Carnaval no Recife, na minha casa, eu juntava gente de todo lugar e fazíamos a festa com discos de Claudionor Germano e Nelson Ferreira”.

O convite para entrar no bloco veio da nora, quando Audicéa voltou a morar na tão amada capital pernambucana.

“Peguei uma fantasia emprestada e chorei do início até o final do desfile, foi a realização de um sonho”, destacou.

Ao lado do Bloco das Flores, os carnavais mais felizes de Audicéa aconteceram depois dos 60. Paullo Allmeida / Folha de Pernambuco

Sonho esse que durou dez anos, até que em 2020, depois de celebrar o centenário do bloco, Audicéa precisou se ausentar para cuidar da saúde. Hoje aos 77, continua com avidez e enfrenta novos desafios. “Comecei na academia para cuidar de um problema muscular que desenvolvi, tenho avançado e feito coisas com meu corpo que antes não conseguia sem sentir dor”.

Na memória, ficam os anos das marchinhas e das serpentinas, e a gratidão por entender que enquanto existir a vida, também existirá o sonho.