HISTÓRIA

Revolução dos Cravos, 50 anos: De país pobre e atrasado, Portugal se tornou referência; entenda

Pesquisa de banco de dados Pordata mostra que analfabetismo caiu de 25,6%, em 1970, para 3,1% após o movimento que acabou com a ditadura, em 1974; crescimento da ultradireita traz preocupações

Mulher caminha no campus da Universidade de Lisboa, onde desenhos de cravos marcam o aniversário da revolução que pôs fim à ditadura - Patricia de melo Moreira/AFP

Intenso como os cravos sobre as roupas cinzentas de 1974, o vermelho de um sinal fechado salvou Rita da prisão. A então estudante de 21 anos combatia na clandestinidade a ditadura em Portugal e achava que era seguida nas ruas de Lisboa pela temida e violenta Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), adepta da tortura que aniquilou ou quase matou alguns de seus camaradas. Ela conta que teve a sorte de parar em um semáforo, abrir a porta e fugir para o carro ao lado, dirigido por um amigo de infância.

Era, assim, carregado, o clima em Portugal antes do 25 de abril de 1974, data da Revolução dos Cravos, que completa 50 anos na quinta-feira. O fim da ditadura de 48 anos (1926-1974), a mais longa da Europa, trouxe liberdade e comprovou como a democracia melhorou os índices de um país considerado atrasado e pobre, como revelou o banco de dados Pordata, num estudo inédito.

“Em 1970, um em cada quatro portugueses (25,6%) era analfabeto. Em 2021, a taxa de analfabetismo era de 3,1%. Cerca de 68% das casas não tinham chuveiro, 53% não tinham água canalizada e 42% não tinham instalações sanitárias, números que se inverteram quase totalmente”.

Segundo um trecho do livro “A Revolução Gentil”, que será lançado em maio pelo escritor Ricardo Viel, mais de um terço da população vivia sem luz elétrica. Havia cerca de 30 mil presos políticos e entre 7 a 10 mil livros censurados. Só em Lisboa, 90 mil pessoas (mais de 10% da população à época) vivam em cerca de 18,5 mil barracas Eram os “bairros de latas”, ou simplesmente favelas.

Ali viviam milhares de mulheres, relegadas pela ditadura ao papel de submissas ao homem por imposição de um Código Civil do século XIX. Elas e seus filhos foram as primeiras a ocupar casas e só depois permitiam a entrada dos homens. Também ganharam direito ao voto.
 

— O homem era o chefe e a mulher lhe devia obediência, como mandava o Código. Isso desapareceu com o 25 de Abril. Mulheres que viviam nas favelas foram com seus filhos para casas ocupadas e depois chamaram os maridos. Fábricas com mão de obra feminina aderiram às greves. Houve um pacto universal para mudar a família e a sociedade. Alterar a mentalidade demorou mais. Mas o fato era que, de repente, tínhamos as leis mais avançadas da Europa — lembrou Rita, pseudônimo de Irene Flunser Pimentel, que uma vez livre da opressão, virou escritora e historiadora especialista na ditadura.

Não houve banho de sangue, mas quatro pessoas morreram na revolução. Segundo Pimentel, todas as vítimas foram assassinadas pela PIDE. A tomada do poder foi organizada pelos militares, que planejavam entregar o comando para a sociedade civil, como de fato aconteceu. O 25 de Abril suave pôs cravos nos canos das armas, imagem atraiu o “turismo da Revolução”, levando a Portugal o colombiano Gabriel Garcia Márquez, o francês Jean-Paul Sartre e o alemão Heinrich Böll, três vencedores do Prêmio Nobel de literatura. E também Sebastião Salgado, Simone de Beauvoir e muitos outros renomados escritores, jornalistas, fotógrafos e cineastas.

— Foi a época do ‘turismo vermelho’. Havia voos fretados da Europa em rota contínua. Lembro que passei a atuar como uma guia informal, não formada, porque estudei no Liceu Francês e sabia falar outros idiomas. O que eu fazia como Rita, na clandestinidade, passei a fazer em liberdade, ao ar livre — conta a historiadora.

Hoje, Portugal respira os 50 anos do 25 de Abril, o que traz à tona o debate em torno da criação de uma rota turística oficial sobre a Revolução dos Cravos para preservar e promover locais históricos.

— A revolução é pouco explorada em termos turísticos. Se em 1974 muita gente veio conhecer o país que tinha derrubado uma ditadura com uma revolução pacífica, hoje pouco se fala disso para os milhões de turistas que todo ano visitam Lisboa — lamenta Viel: — As iniciativas do poder público são tímidas e mal-feitas. Desafio qualquer pessoa a ir à Praça do Comércio e achar alguma referência, uma placa ou busto, sobre o que aconteceu lá no dia 25 de Abril de 1974. Visitar o quartel da Pontinha, onde foi o Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas, é fazer uma viagem no tempo (e nem todas são boas). Tudo o que está lá parece que foi feito nos anos 80 e nunca mais foi tocado.

Ultradireita em alta
Para a historiadora, uma rota dos Cravos seria também uma maneira de rebater o saudosismo fascista que tem ocupado ruas e redes sociais. Principalmente com grupos organizados para idolatrar a figura do ditador António de Oliveira Salazar, que ingressou no governo em 1928, criou o Estado Novo em 1933 e comandou o país com mão de ferro até morrer, em 1970.

— Mesmo com dados que provam como a democracia só fez bem, há quem defenda que na ditadura de Salazar é que era bom. É reflexo de um processo que começou com as eleições de Donald Trump e Jair Bolsonaro e liberou as pessoas da vergonha que tinham de dizer o que pensavam. Em Portugal culminou no partido Chega — diz Pimentel, que também faz um alerta para o simbolismo de ter 50 deputados da ultradireita do Chega eleitos para o Parlamento justamente nos 50 anos da retomada da democracia: — O Parlamento é a principal instituição da democracia e a vontade deles é destruir a democracia.

Uma pesquisa do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e do Instituto Universitário de Lisboa para o semanário “Expresso” e para a rede SIC revelou que 35% dos simpatizantes do Chega dizem que Portugal está pior do que na ditadura. Embora a maioria das pessoas ouvidas acredite que a vida esteja melhor, também considera que a criminalidade e a corrupção pioraram. Outro alerta da pesquisa: 34% preferem ter um líder forte e alçado ao poder sem eleições democráticas.

Em um jantar oferecido na segunda-feira em Lisboa a jornalistas estrangeiros, o presidente Marcelo Rebelo de Sousa afirmou que a transição pacífica do 25 de Abril é um orgulho. E ressaltou que a população percebe os benefícios que a democracia trouxe.

— Neste momento, apesar de ainda existirem dois milhões na pobreza, das desigualdades e da falta de coesão territorial, os portugueses sentem que estão vivendo um momento sem sobressaltos econômicos. As ajudas do governo acomodaram a situação social e a sensação é de razoável estabilidade política.