CHICO SCIENCE & NAÇÃO ZUMBI

"Da Lama ao Caos": três décadas de originalidade

Disco que revolucionou a cultura musical pernambucana, e influenciou toda uma geração, completa 30 anos

Da Lama ao Caos - Greg/Folha de Pernambuco

Era 9 de abril de 1994. Chico Science & Nação Zumbi (CSNZ) se apresentavam na 2ª edição do Abril Pro Rock, no Circo Maluco Beleza, na Zona Norte do Recife. Naquele dia, eles recebiam, em mãos, pela primeira vez, o disco “Da Lama ao Caos”, sua estreia fonográfica, pela gravadora Sony, um caminho sem volta para fazer o ideário Mangue – devidamente simbolizado pela antena parabólica fincada na lama – ultrapassar as fronteiras pernambucanas e alcançar o mundo.

Após 30 anos do seu lançamento, “Da Lama ao Caos” continua sendo uma referência inconteste da revolução que provocou na música e nas culturas pernambucana e brasileira. Não à toa, está entre os 100 melhores discos brasileiros da história em seleção da Rolling Stone Brasil, e o melhor disco brasileiro dos últimos 40 anos, pelo O Globo.

De hoje (29) a quarta (1º), a Folha de Pernambuco vai abordar o álbum, suas referências estéticas, ideológicas, sua recepção aqui e mundo afora, e o seu legado, através de depoimentos de quem participou de sua feitura, de quem o viu acontecer e de quem pesquisou sua trajetória.

Ouça o disco completo:



Caldeirão inédito
“Da Lama ao Caos” apresentou ao Brasil algo inédito: musicalmente, misturava maracatu, coco, ciranda e outros elementos muito próprios da cultura pernambucana com o som que rolava na gringa, hip hop, funk, rock e psicodelia.

“Foi algo tão novo e original que até hoje não foi totalmente decodificado. O que para o pernambucano é corriqueiro, era estranho para a crítica do Sudeste e de outros estados. Ainda mais com a percussão, o baixo de Dengue e a guitarra trash metal de Lúcio Maia”, diz o jornalista e escritor José Teles, “testemunha ocular da história”.

Lembrando que isso era começo dos anos 1990. O que bombava nas rádios eram outros sons.  “Nos anos 90, nacionalmente falando, são esses três nichos que viram mainstream: Pagode, Axé e o Sertanejo pop primeira geração”, lembra Paulo André Pires, produtor e empresário de CSNZ e criador do Abril Pro Rock, festival que foi a principal vitrine do Manguebeat.




Podemos dizer que o primeiro verso que Chico entoa no disco – “modernizar o passado é uma evolução musical” –, de “Monólogo ao Pé do Ouvido”, é a máxima que permeia as 14 faixas de “Da Lama ao Caos”.

Ao longo do disco, nos deparamos com uma permanente conexão entre ancestralidade/tradição e contemporaneidade. "At night, over rivers and bridges... ”, é a voz de Mark E. Smith, da banda inglesa The Fall, que abre “Rios, Pontes & Overdrives” (Chico Science e Fred 04), um coco, cantado em embolada, com guitarras em wah-wah. É um sampler da faixa “Light/Fireworks”, do álbum “The Infotainment Scan”, lançado em 1993, ano em que “Da Lama ao Caos” começou a ser gravado.

Outro sampleado foi o trompetista Don Cherry. Sua música “Brown Rice”, de 1975, está na introdução de “Samba Makossa”, que tem como referência, por sua vez, “Soul Makossa”, do saxofonista camaronês Manu Dibango, e lançada em 1972. Ou a “A Cidade”, que traz em sua introdução o Velho Faceta e, no fim,  um sampler de “Boa noite”, do grupo Baianas de Ipioca, de Alagoas. Na música, as alfaias fazem uma batida funkeada, criação do percussionista Maureliano, que fazia parte do grupo Lamento Negro, o embrião da Nação Zumbi, de onde viria, também, Gilmar Bola 8, que levou Chico a conhecer o grupo percussivo de Peixinhos.

Vanguarda
“O disco estava à frente do seu tempo. Eu acho que ele continua muito lá na frente ainda, pelas intenções, pelo uso da percussão, pela formação da banda. Não tem bateria. São três tambores, caixa e percussão. E pelas letras. Eu acho ele bem atual”, considera Jorge Du Peixe, vocalista da Nação Zumbi e autor da letra de “Maracatu de Tiro Certeiro”.

A cabeça pensante e inquieta foi a principal arquiteta de "Da Lama ao Caos" | Foto: Agência Estado

Para o professor e pesquisador da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Ricardo Maia Jr., cuja tese de doutorado foi sobre o momento “pós-mangue”, “Da Lama ao Caos” traz “um frescor de fusão e de possibilidades entre o local e o global, entre o nacional e o estrangeiro como fizeram os tropicalistas em seu tempo e como propôs antes Oswald de Andrade em seu Manifesto Antropofágico”.

“Além de resgatar nomes importantes como Josué de Castro que influenciou as letras do disco. São conexões que a princípio parecem que não tem nada a ver com a música, mas trazem uma visão crítica do mundo e ampliam o alcance das músicas. É um álbum de formação de caráter e de cidadania. É um disco revolucionário e de luta também. Todas essas conexões que eles condensaram trazem uma densidade absurda pra essa obra”, continua Maia Jr.

Convidado pela Sony para produzir “Da Lama ao Caos”, Liminha diz ser um grande orgulho ter feito esse trabalho. Para ele, o trunfo do disco é a “fusão de música brasileira – o maracatu e os ritmos – com o hip hop e com o rock. Eles tinham esse trinômio, Chico tinha essa concepção, e isso me chamou a atenção. Era muito diferente de tudo. Isso que fez o The York Times se interessar pela banda, pelo som da banda”, recorda o produtor.

A jornalista Lorena Calábria, que escreveu, em 2017, o livro “Da Lama ao Caos - Chico Science & Nação Zumbi”, conta sobre quando ouviu o álbum pela primeira vez. “Eu fiquei chocada e falei: ‘Gente, isso é muito bom! Isso é muito diferente!’. É difícil até de explicar porque é tão boa essa mistura, tem tanta coisa diferente do que a gente tava acostumado na época. Ao mesmo tempo que era moderno, gerenciava ritmos nordestinos”, completa Calábria.

“Chico era o cara que chegava com um calhamaço de letras e um monte de disco sabe? A gente ouvia vinil no estúdio. Eles tinham uma informação também muito boa, sabia? Não era uma bandinha assim que os caras não sabem nada, não. Eles sabiam muito”, diz Liminha.

A jornalista Lorena Calábria dissecou "Da Lama ao Caos" em livro | Foto: Reprodução/Instagram

“Pra gente que acompanhava Chico Science e o Nação, tinha um repertório tão familiar que o disco foi algo que já esperávamos desde que a banda passou a ter um grande público no Recife, e atraiu jornalistas do Rio e São Paulo ao Recife. Poucos discos na música brasileira receberam mais atenção da imprensa brasileira, e poucos foram tão pouco compreendidos”, considera José Teles.

“Um dos 100 melhores discos do Brasil, mas não na hora. Não ganhou disco de ouro porque o Brasil não tava preparado para aquela sonoridade naquela época”, considera Gilmar Bolla 8 sobre o impacto do som de “Da Lama ao Caos”. “Eu acredito que hoje, por nunca ter parado de vender, pode ter batido disco de platina, que, na época de ‘Afrociberdelia’, a gente ganhou o disco de ouro – 100 mil discos. Certamente, [‘Afrociberdelia’] bateu 250 mil e puxou ‘Da Lama ao Caos’, só que com a internet e a decadência do mercado fonográfico, cortou pela metade: platina passou a ser 125 mil e ouro 50 mil”, acredita Paulo André Pires.

Josué e caranguejos
A miscelânea de referências de “Da Lama ao Caos” também passava pelos temas abordados pelas letras, pelo discurso. Ficção científica, tecnologia, Teoria do Caos, Josué de Castro (referenciado pelo livro “Homens e Caranguejos”, de 1967), tudo era reprocessado pela mente afiada de Chico Science, que utilizava a linguagem da juventude urbana do Recife dos anos 1980/1990, e também incorporava aos seus versos críticas sociais, os conceitos do Manguebeat, e o cenário da Capital pernambucana, na época, a “4ª pior cidade do mundo”, segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE).

“A poesia de Chico é uma poesia que todo mundo se identifica, desde o cara que vive na periferia até a classe média que fez universidade, porque Chico fala de Josué de Castro, fala de quântica. O modo como ele cantou e a linguagem que ele usou para falar de banditismo, a periferia também se identifica”, destaca Gilmar Bola 8, membro fundador e ex-integrante da Nação Zumbi.

O renomado produtor Liminha conduziu as gravações de "Da Lama ao Caos" | Foto: Reprodução/Facebook

A faixa-título, "Da Lama ao Caos" é a que traz, mais carregadamente, a influência do sociólogo pernambucano. "Ô, Josué, nunca vi tamanha desgraça/ quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça". A preocupação com a desigualdade social, a pobreza e a questão da fome que Josué trazia em sua obra é a tônica da música.

É de Josué de Castro – e mais particularmente de "Homens e Caranguejos" – que Chico também alimenta o conceito do mangue como esse ecossistema biodiverso e fértil – alusão, manejada aí por Chico, à diversidade cultural das entranhas de Pernambuco –, do qual se sustentam e se alimentam os homens que se encrustam na lama, assim como os caranguejos.

 

 
 
 
 
 
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"[Chico era] um cara que não tinha uma vivência, um estudo acadêmico, mas ele tinha uma inteligência, uma sabedoria de ler um texto sobre Teoria do Caos, pegar ali a essência e colocar numa letra", diz Lorena Calábria.

As mazelas e as desigualdades sociais da metrópole estão presentes na letra de "A Cidade". O banditismo e a marginalidade – assim como o que podemos chamar de anti-heróis e lendas urbanas – marcam os versos de "Banditismo por uma Questão de Classe".

A cidade do Recife, o seu cenário urbano, a noite, assim como o vernáculo próprio da juventude antenada dos anos 1990 compõem "Antene-se". A psicodelia, a teoria do Caos, a música quântica estão compilados em "Coco Dub (Afrociberdelia)", que encerra "Da Lama ao Caos" e prenuncia o segundo álbum.

“Eu acho que as letras do Chico, o jeito que ele escrevia, ainda que não seja tão didático, mas as mensagens que ele deixa – algumas mais explícitas, outras mais cifradas – têm um teor, um contexto social e político, ainda muito forte (...) dessa desigualdade social, dessa discrepância que no Brasil ainda continua”, diz Lorena Calábria

“Ele, olhando para a cidade, olhando para Recife/Olinda, consegue falar universalmente, para qualquer cidade que sofre com esse desenvolvimento desenfreado, que convive com áreas muito pobres, com essa desigualdade toda e esse contraste. Então, ele foi ele foi brilhante nisso!”, conclui a jornalista.

Acompanhe a sequência do especial "Da Lama ao Caos 30 Anos" em "A modernidade feita à mão".