"Da Lama ao Caos": Manguebeat rompendo fronteiras
Carreira internacional do disco se deu através da "From Mud to Chaos World Tour", turnê armada na raça pelo produtor Paulo André Pires
Mesmo tendo sido um disco de grande impacto estético e cultural, com excelente recepção na crítica especializada, “Da Lama ao Caos” não teve um bom desempenho de vendas no mercado brasileiro. Apesar de ter “A Praieira” na trilha de novela da Globo (“Tropicaliente”), já em 1994, o que poderia garantir sucesso midiático, o disco não deslanchou. De saída, não chegou a vender 10 mil cópias.
“A gente tá falando da última geração de bandas que não contou com a internet nem para se promover nem para se comunicar”, ressalta Paulo André Pires, empresário de Chico Science & Nação Zumbi (CSNZ) à época, sugerindo um possível gargalo que impediu a larga distribuição no Brasil. No entanto, ele acreditou que o mercado estrangeiro seria mais receptivo que o nacional… e mãos à obra.
Turnê internacional
Apesar de terem o contrato com uma grande gravadora, a Sony Music, Chico Science & Nação Zumbi não recebiam o mesmo tratamento que alguns de seus colegas de elenco – como Gabriel O Pensador ou Skank – para divulgar “Da Lama ao Caos”. Eram “os primos pobres” da empresa. Segundo Paulo André, as escolhas comerciais, de marketing e o orçamento disponibilizado pela Sony não atendiam ao que aquele produto – tão peculiar – demandava.
“Éramos recém-chegados também nesse cenário brasileiro, meio que assustando com a nova proposta musical, vindo de Recife e a Sony, na época, talvez tenha confundido a gente, de longa distância, pelos tambores, com uma coisa similar, porém, descobriram depois que a intenção era outra, o som era outro, as letras de cunho social, então tinha um todo diferencial”, pondera Jorge Du Peixe.
“Outros tempos, difícil fazer uma análise, dizer exatamente o que não pode impulsionar essas vendas, mas eram outros tempos, outro mercado. A gravadora talvez não tenha dado o impulso necessário o suficiente para que isso acontecesse, no médio, no curto prazo”, completa o músico.
A articulação para a primeira turnê internacional da banda, por exemplo, não foi feita pela Sony, mas, sim, no esquema do it yourself, pelo próprio Paulo André. Em um dos shows de CSNZ, em Salvador (BA), o produtor recebeu uma espécie de catálogo, do jornalista Sean Barlow, com contatos de festivais, bares e clubes gringos.
Por volta de setembro de 1994, de posse desse catálogo, Paulo André começou a despachar, uma a uma, para os endereços listados, cópias do “Da Lama ao Caos”, apresentando CSNZ. Pouco tempo depois, os retornos começaram a chegar, por fax.
Em julho de 1995, a "From Mud to Chaos World Tour" caiu na estrada: com shows nos Estados Unidos, entre eles, o antológico Central Park Summerstage, em Nova York, em que Chico foi chamado a dividir palco com Gilberto Gil, e, na Europa: Bélgica (no conceituado festival Sfinks, que foi o primeiro do roteiro gringo de CSNZ), Alemanha, Holanda e Suíça (no Festival de Montreux).
Foram quase dois meses em turnê, no modo “guerrilha”. Onze caras – oito músicos, Paulo André, técnico de som e roadie. Na Europa, a banda se deslocava de uma cidade para outra de trem, enquanto os outros três iam de van – Paulo André como motorista –, levando instrumentos, equipamentos e malas de toda a equipe.
O show do "Da Lama ao Caos" voltou à Europa, posteriormente, em dezembro de 1995, para o festival Trans Musicales, em Rennes, na França.
O sucesso do primeiro giro internacional rendeu uma nova turnê, em 1996, já com o segundo disco, “Afrociberdelia”, lançado e com mais países incluídos, como Dinamarca e Áustria. “Além de não ser o óbvio da música brasileira, acho que foi esse frescor de uma referência de uma nova música brasileira que não se enquadrava naquilo que eles conheciam, que era a MPB, o samba e a Bossa Nova”, lembra Paulo André.
“Quando eu terminei de escrever o livro, que eu li ele todinho, antes de corrigir com o editor, eu disse: ‘meu irmão, eu não sei como é que eu consegui, não’, porque ninguém falava inglês, eram mil recados por dia, e não era de celular não, era tudo no telefone fixo… mas foi um divisor de águas na vida da galera”, relembra Paulo, que registrou essas (e muitas outras) histórias no livro “Memórias de um motorista de turnês”, pela Cepe Editora.
Rádios e coletâneas
No Brasil, “Da Lama ao Caos” também sofreu de uma certa inadequação ao recorte estreito das rádios comerciais brasileiras. Uma música que tinha tambores, mas não era axé music; uma música feita por nordestinos, mas não era forró. Uma música que tinha rock, mas não era rock.
“Quando chegou nas rádios rock de São Paulo, eram três. A 89 FM: ‘Não, isso aí a gente não toca, porque a banda nova do Nordeste…”, aí ele falou no Nordeste, ‘isso é regional, e a gente não vai tocar’, exatamente pelo estranhamento dos caras (...) a Brasil 2000 e a 97 FM: ‘Não vai tocar’”, relembra Paulo André.
De uma forma geral, a execução de “Da Lama ao Caos” nas rádios brasileiras foi pouca. “Tocaram muito timidamente. Então, dá para dizer que não tocou porque era tão tímido. Quando você diz que tocou na rádio e fez um efeito, deu público no show e vendeu discos… mas nada disso aconteceu. Tocou tão pouco que nem vale a pena”, diz o produtor.
Já fora do Brasil, “Da Lama ao Caos” teve uma boa execução em veículos de radiodifusão, especialmente na Europa. Em alguns meses do ano de 1995, CSNZ figurou entre os 10 mais tocados da rede World Music Charts Europe, onde aparecem nomes de todo o mundo; assim como CSNZ e Sepultura são os únicos brasileiros a estarem na Virgin Encyclopedia of the Nineties Music da música dos anos de 1990.
“Da Lama ao Caos” também circulou em versões estrangeiras – japonesa, americana e europeia – licenciadas pela e para as próprias filiais da Sony nessas praças. Além disso, músicas do disco estiveram em inúmeras coletâneas gringas, como o "Beleza Tropical Vol. 2", do selo Luaka Bop, de David Byrne.
Acompanhe a sequência do especial "Da Lama ao Caos 30 anos" em "O legado do álbum para além da música".