EUA

Lei que restringe acesso ao aborto somente até a sexta semana entra em vigor na Flórida

Estado é mais um a dificultar quase totalmente o acesso ao procedimento após a queda da Roe vs. Wade, que abrigava a interrupção da gravidez sob o guarda-chuva do direito federal

Manifestação de ativistas pelos direitos ao aborto em frente à Suprema Corte dos EUA - Drew Angerer/AFP

Uma lei que proíbe o aborto após seis semanas de gravidez entrou em vigor nesta quarta-feira, no estado da Flórida. A "Heartbeat Protection Act" (Lei de Proteção dos Batimentos Cardíacos, em tradução livre) - assim chamada porque estabelece o prazo para o procedimento a partir do momento em que os sinais vitais do feto são detectados - passou a valer após uma decisão do Supremo Tribunal do estado e anula a regra anterior, que permitia a realização do procedimento até as primeiras 15 semanas de gestação, e é uma das mais restritivas dos EUA.

O governador republicano da Flórida, Ron DeSantis, aprovou o prazo de seis semanas para o aborto em abril do ano passado, mas sua implementação foi adiada até agora porque várias organizações denunciaram a medida, alegando que violava as leis estaduais de privacidade. A Suprema Corte da Flórida rejeitou a denúncia há um mês, permitindo que a lei entrasse em vigor nesta quarta.

A medida prevê exceções para gestações de até 15 semanas resultantes de estupro, incesto ou tráfico humano, embora seja necessário apresentar documentação, como ordem de restrição, registro médico ou boletim de ocorrência policial. Há também exceção para risco materno e, antes do terceiro trimestre, para anomalias fetais fatais. Na prática, a equivale a uma proibição quase total: a maioria dos especialistas concorda que muitas gestantes não conseguem saber que estão grávidas nesse estágio.

"Esta lei complica muito as opções para as mulheres da Flórida, especialmente aquelas que estão em uma situação mais desfavorável, e especialmente para a população latina", explicou Michelle Quesada, vice-presidente de comunicações da Planeed Parenthood do Sul, Oeste e Norte da Flórida. "Não só as obriga a viajar para um local muito distante, como também exige um grande esforço: são pelo menos cinco dias fora de casa, em algum hotel e subsídios correspondentes, além de ter que pedir licença no trabalho. Muitas das que abortam já têm filhos, e procurar alguém com quem deixá-los é um problema adicional".

A Flórida há muito desempenha um papel significativo no cenário americano do aborto, com dezenas de clínicas que oferecem o procedimento a dezenas de milhares de residentes por ano, ao mesmo tempo que acolhia pacientes de outras regiões do sul. Terceiro estado mais populoso do país, tem cerca de de 50 clínicas e no ano passado realizou cerca de 84 mil abortos — quase 8 mil deles eram para mulheres de fora do estado.

Agora, o estado soma-se a Geórgia e Carolina do Sul, onde o procedimento também não é permitido após a sexta semana, e a estados onde a lei é ainda mais restrita, como no Texas, Louisiana, Mississippi, Oklahoma, Alabama, Alabama, Arkansas, Tennessee, Kentucky, Missouri, Indiana e Virgínia Ocidental, onde o aborto é completamente proibido.

Quesada explicou que os obstáculos empurram as mulheres para outra opção ainda mais ao norte: Virgínia, um estado onde a vitória democrata nas eleições de novembro passado afastou a aspiração do Partido Republicano de mudar as normas do aborto das atuais 15 semanas para seis semanas.

Aborto nas eleições
O retrocesso é consequência da mais recente decisão da Suprema Corte dos EUA de junho de 2022, que anulou a decisão histórica Roe v. Wade (1973) e, com ela, a proteção federal do direito ao aborto. O presidente Joe Biden classificou a medida desta quarta como um “pesadelo” promovido por seu rival e antecessor Donald Trump. O republicano frequentemente se gaba de ter permitido a queda da Roe vs. Wade, já que, durante seu mandato (2019-2021), inclinou a alta corte para o campo conservador com a renovação de três de seus nove juízes.

"Hoje, uma proibição extremista do aborto entra em vigor na Flórida, vetando o aborto antes mesmo de muitas mulheres saberem que estão grávidas", disse Biden em um comunicado.

A vice-presidente dos EUA, Kamala Harris, está visitando a Flórida, governada pelos republicanos, nesta quarta-feira para fazer um discurso no qual criticará Trump. Biden já viajou na semana passada para o estado, que votou esmagadoramente no republicano nas duas últimas eleições presidenciais. Os democratas estão tentando fazer do aborto uma questão importante nas urnas em novembro, esperando que isso lhes renda votos contra Trump.

Harris tem feito um número crescente de declarações sobre o assunto nos últimos meses. Em um discurso em Jacksonville nesta quarta-feira, ela classificará restrições na Flórida e em outros 20 estados de “proibições de aborto de Trump”. A vice também deve criticar Trump por uma entrevista à revista Time publicada na terça-feira, na qual ele disse que os estados poderiam monitorar a gravidez das mulheres para ver se elas fizeram aborto apesar da proibição.

Além dos direitos das mulheres, há 30 votos eleitorais em jogo. Uma (improvável) vitória democrata na Flórida ajudaria muito as aspirações de Biden de permanecer na Casa Branca.

Trump, por sua vez, está tentando encontrar um equilíbrio entre um público americano amplamente "pró-escolha" e a parte mais conservadora de seu eleitorado. Quando perguntado pela Time se apoiaria uma proibição federal do aborto, como a direita religiosa está exigindo, o ex-presidente não fez comentários.

Uma questão espinhosa
Sob a liderança de DeSantis, ex-candidato à indicação republicana, a Flórida reduziu o prazo legal para abortos duas vezes: primeiro de 24 para 15 semanas de gravidez e depois para seis semanas. Além de um triunfo para o republicano, a nova medida também é uma vitória para as organizações antiaborto em um estado que se tornou solidamente republicano nos últimos anos. Mas essa vitória pode ter vida curta.

No mesmo dia em que a Suprema Corte do estado deu sinal verde para que a regra entrasse em vigor, seus juízes aprovaram o texto que será colocado em votação em novembro próximo, quando, além de eleger o inquilino da Casa Branca, o povo da Flórida decidirá se incorporará uma emenda à constituição estadual que protegeria o direito ao aborto.

O texto, resumido, diz: “Nenhuma lei deve proibir, criminalizar, atrasar ou restringir o aborto antes da viabilidade ou quando necessário para proteger a saúde da paciente, conforme determinado pelo médico da paciente. Essa emenda não altera a autoridade constitucional do Legislativo de exigir a notificação de um dos pais ou responsável antes que uma menor se submeta a um aborto”. Para ser aprovado, o texto precisará de 60% de votos a favor.

Em novembro, os eleitores também serão consultados sobre a questão em Nova York e Maryland. Doze outros estados estão em processo de coleta de assinaturas para colocar a decisão na cédula de votação. Para as organizações antiaborto, o projeto é enganoso e abre a porta para a interrupção da gravidez até pouco antes do nascimento.

"É extremamente radical", diz a radiologista Grazie Christie, que fala em nome da Susan B. Anthony Foundation, uma das organizações antiaborto mais ativas dos EUA, ponderando: "O conceito de viabilidade é muito vago. Eles fazem isso de propósito".

A declaração feita por Christie foi dada dias antes admitir, em uma entrevista por telefone nesta semana, que há um consenso médico de que a viabilidade pode ser definida em 21 ou 22 semanas, o prazo que estava em vigor na Flórida até 2022.

"A emenda diz que até a viabilidade você pode fazer [um aborto] por qualquer motivo, e depois disso, por motivos de saúde, mas é aí que entra, como já vimos isso em outros estados, a saúde psicológica. Ou seja, ‘tenho muita ansiedade, não consigo dormir, estou morrendo de preocupação’. Isso é um crime".

A verdade é que a grande maioria dos abortos é realizada nas primeiras 15 semanas. De acordo com a Planned Parenthood e outras organizações, os abortos no último trimestre são feitos principalmente por motivos de saúde física. Os argumentos do aborto tardio e dos perigos para menores, compartilhados por DeSantis, são uma reminiscência da estratégia seguida por outras campanhas para impedir que uma emenda como a que será votada na Flórida vá adiante.

Isso aconteceu em Michigan em 2022, ou em Ohio no ano passado. Em ambos os estados, e nos outros cinco onde os eleitores puderam decidir sobre a liberdade reprodutiva das mulheres, não funcionou, e o resultado foi sempre o mesmo: a blindagem das proteções ao aborto. A questão que promete ser uma das mais quentes na campanha eleitoral. (Com AFP, El País e NYT)