"O oropouche pode ser mais difícil de tratar do que a dengue" diz virologista
Em entrevista ao GLOBO, Amílcar Tanuri tira todas as dúvidas sobre a entrada do vírus amazônico em outras regiões do país
Em meio aos mais de quatro milhões de casos de dengue no Brasil, chama a atenção de cientistas a entrada do vírus amazônico oropouche em estados do Sudeste, Sul e Nordeste. Há décadas a ciência alerta que isso poderia ocorrer. O vírus viaja ao sabor do deslocamento humano e das mudanças climáticas, que com mais calor encontrou um clima favorável para se disseminar.
Considerado um dos virologistas mais experientes do Brasil, Amílcar Tanuri, coordenador do Laboratório de Virologia Molecular e integrante do Núcleo de Enfretamento e Estudos de Doenças Infecciosas Emergentes e Reemergentes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), afirma que há muitos mistérios sobre esse vírus, que pode se tornar mais difícil de combater do que a dengue.
Qual o tamanho da ameaça que o vírus oropouche representa?
O tamanho exato ainda é impossível de dizer. O fato é que a febre do oropouche é uma mais uma doença para afetar a população e isso nunca é bom. Ela quase sempre não é grave, mas pode provocar dores fortes, principalmente atrás dos olhos. Já temos muitas doenças, mais uma só piora as coisas. E há alguns poucos casos que podem evoluir para meningite. Não pode ser ignorada. E se trata de um vírus completamente diferente dos da dengue, zika e chicungunha.
Quão diferente o vírus Oropouche é da dengue, zika e chicungunha?
Totalmente. Dengue, zika e febre amarela são parentes. Chicungunha é de outra família, a mesma do mayaro. E o oropouche é completamente distinto de todos eles, de uma família chamada, Orthobunyavirus.
Como a dengue, ele não tem tratamento específico. Qual o maior impacto de sua entrada?
Primeiro, nem a vacina nem nada produzido contra a dengue vai funcionar para controla-lo porque ele é muito diferente. Além disso, teremos mais mosquitos, além do Aedes aegypti, transmitindo doenças.
O Oropouche é mais difícil de tratar do que a dengue?
E no que diz respeito a mosquitos, o oropouche pode ser mais difícil de combater que a dengue. Há vários transmissores. O principal vetor é o Culicoides paraenses, mais conhecido como borrachudo, maruim em alguns lugares do Brasil. É um mosquito comum, que pica o ser humano, mas também uma série de outros animais. Mas esse vírus já foi encontrado em outras espécies de mosquito, como o pernilongo comum (Culex quinquefasciatus) e sabemos que pode infectar outras espécies de mosquitos (Coquillettidia venezuelensis e Aedes serratus). Na verdade, ainda não está bem estabelecido quantos vetores ele pode ter. E isso é um grande problema.
Por quê?
Porque por ter vários transmissores seu combate se torna potencialmente mais difícil. Os mosquitos são extremamente difíceis de controlar, a dengue está aí para mostrar. O borrachudo vive em áreas silvestres, rurais, mas também é encontrado em cidades ou parte delas. O pernilongo está em toda parte. Ter mais um vírus que não se sabe exatamente nem quem está transmitindo em todo o país só torna as coisas mais complicadas. E ainda há outras questões.
Quais?
Não sabemos, por exemplo, quem são os hospedeiros naturais desse vírus, onde ele se esconde. E nem que linhagem do oropouche, que parece estar mais adaptado, tem se espalhado pelo Brasil. Nos surtos anteriores na Amazônia, em 2018, ele tinha vindo do Peru. Mas agora não sabemos.
O quanto ele se espalhou?
Por ora, sabemos que ele tem causado casos em estados como Rio de Janeiro, Paraná, Santa Catarina, todos muito longe de sua área de ocorrência. Ele era até pouco tempo um vírus estritamente amazônico. Não se sabe quantos casos são “importados” de lá e quantos são do próprio local, sinal de que vírus está sendo localmente transmitido. Mas é muito provável que tenha se estabelecido fora da Amazônia e já há algum tempo.
Há quanto tempo?
Não sabemos. Mas acho que ele já deveria estar se espalhando há alguns meses ou anos e tenha sido confundido com a dengue porque os sintomas são muito parecidos. Qual o verdadeiro percentual de casos de oropouche confundidos com dengue e não testados? Ninguém tem essa resposta nesse momento. É uma das coisas que se precisa investigar.
E por que começou a ser detectado este ano?
Um dos motivos certamente foi a aplicação de testes moleculares rápidos. O kit desenvolvido por Bio-Manguinhos está sendo aplicado em maior escala nesta epidemia. Os casos negativos para dengue, zika e chicungunha são enviados para análise e é aí que se identifica o oropouche.
Esse vírus foi descoberto há seis décadas por que só começou a se espalhar para fora da Bacia Amazônica recentemente?
A ciência alerta há muitos anos que o desmatamento e as mudanças climáticas criariam as condições para que vírus tropicais pudessem se disseminar para fora de suas áreas de origem. Creio que é exatamente isso que está acontecendo. O clima mudou e os vírus se mudaram com ele. E penso que a descida do oropouche rumo ao sul do país é um alerta.
De que?
A Amazônia tem uma imensa diversidade de vírus. O desmatamento os coloca em contato com pessoas, o clima mais quente em outras regiões cria as condições para que eles e seus vetores saiam de seu habitat natural e se propaguem por regiões onde não existiam. O oropouche até sofreu algumas mudanças, mas não foram tão significativas. O que mudou foi o meio ambiente e ele está favorável para os vírus.