Constituição

México: maioria no Congresso abre caminho para aprovar leis que aumentam poderes presidenciais

Projetos do presidente e aliado López Obrador, que pretendem reformar sistema judicial e concentrar competências de órgãos independentes no Executivo

A candidata presidencial do México pelo partido governista Morena, Claudia Sheinbaum - Alfredo Estrella / AFP

A margem de votos conquistada por Claudia Sheinbaum na eleição presidencial do México foi a maior em décadas, e mesmo enquanto os votos ainda eram contabilizados na segunda-feira, tornou-se claro que o Morena, partido governista de esquerda, e seus aliados, poderiam conquistar uma condição que os permitiria remodelar a configuração política do país.

A coalizão parece prestes a conquistar uma maioria no Congresso capaz de aprovar propostas de alteração da Constituição que preocupam a oposição, incluindo o avanço de uma legislação controversa que poderia potencialmente desmantelar controles cruciais sobre o poder do Executivo.

Sheinbaum, a primeira mulher a ser eleita presidente, venceu com uma margem impressionante de 30 pontos percentuais — ou mais, uma vez que os números são aproximados —, segundo a contagem rápida do Instituto Nacional Eleitoral (INE). As pesquisas indicavam que ela e seu partido vencessem, mas a vitória retumbante superou as expectativas.

"Estamos levando tudo nestas eleições"  disse Mario Delgado, líder do partido Morena, em discurso no domingo.

A eleição serviu de referendo sobre o mandato de quase seis anos do presidente Andrés Manuel López Obrador, e os resultados preliminares indicam que uma sólida maioria do eleitorado apoiou a sua gestão do país.

Segundo os dados iniciais, o Morena conquistou sete dos nove governos em disputa — incluindo o mais proeminente, o da Cidade do México — e obteve a maioria absoluta em pelo menos 22 das 32 legislaturas estaduais.

Durante o mandato de López Obrador, milhões de pessoas saíram da pobreza, o salário mínimo duplicou e as pensões foram ampliadas para mais mexicanos. Seu governo, no entanto, também deu poder aos militares, priorizou os combustíveis fósseis e promoveu medidas que, segundo os críticos, poderiam enfraquecer as instituições democráticas do México.

Ainda assim, as preocupações com as medidas pouco fizeram para afastar a maioria dos eleitores de Sheinbaum, indicada como sucessora de López Obrador.

"Os eleitores deram a Claudia um mandato que poucos ousaram prever"  disse John Feeley, vice-chefe da missão da Embaixada dos Estados Unidos no México, de 2009 a 2012. "Claudia venceu de forma dominante".

Para alguns críticos, porém, a ascensão de um Morena com um controle muito maior em ambas as casas do Congresso já fez soar o alarme.

"Eu tinha descartado a possibilidade do partido receber um cheque em branco para fazer o que quisesse. Mas é isso que estamos vendo agora" disse Roberta Lajous, diplomata mexicana que serviu como embaixadora em quatro países. — O sistema democrático tem sido usado para limitar a democracia.

Sistemas de pesos e contrapesos
As mudanças sistêmicas que López Obrador propôs reduziriam, entre outras coisas, o número de legisladores no Congresso; eliminariam muitos órgãos reguladores independentes, transferindo suas funções para agências federais; e tornaria os juízes da Suprema Corte sujeitos à eleição por voto popular. Ele também propõe que funcionários eleitorais sejam escolhidos por voto popular, uma medida que os críticos alertam que enfraqueceria a independência das instituições.

Até agora, a oposição no Congresso frustrou essas ambições.

"Parece haver um consenso de grande parte da população em dizer: 'Vá em frente com seu projeto'" disse Sergio López Ayllón, professor de direito da Universidade Nacional Autônoma do México, que assessorou instituições como o Senado Mexicano e o Supremo Tribunal.

Mas ainda falta uma peça do quebra-cabeças para que o Morena e dois partidos coadjuvantes da aliança eleitoral exerçam controle total sobre a legislatura. Os primeiros resultados mostram que a aliança irá obter uma maioria absoluta de dois terços na Câmara dos Deputados, o que lhe permitirá aprovar alterações constitucionais, mas poderá ficar aquém dessa marca no Senado, por alguns poucos assentos.

Dados do INE, apresentados pela Secretaria de Governo, apontam que a coalizão governista liderada pelo Morena deve conquistar 82 cadeiras, muito perto das 86 necessárias para obter maioria no quórum qualificado de 2/3 da Casa. Mesmo que não alcance a marca sozinha, a coalizão ainda poderá conseguir reunir uma maioria absoluta fazendo acordos com outros legisladores, de acordo com especialistas jurídicos.

"Eles terão que negociar alguma coisa" disse López Ayllón. "E se conquistarem os assentos [necessários no Senado] isso abrirá um caminho que levará a mudanças constitucionais muito rápidas".

Uma incógnita é o quão comprometida Sheinbaum, que assumirá o cargo em 1º de outubro, realmente está em promover as mudanças que López Obrador propôs em fevereiro, e que ela rapidamente adotou como suas. Embora tenha defendido publicamente as propostas, analistas também acreditam que ela não teve escolha senão apoiar totalmente López Obrador durante a campanha.

O peso mexicano caiu mais de 3% na segunda-feira, uma queda rara para uma moeda que vem se mantendo forte em relação ao dólar. O nervosismo nos mercados financeiros reflete um desconforto mais amplo em relação a uma potencial erosão do sistema de freios e contrapesos, o que poderia expandir o papel do governo na economia, de acordo com estrategistas financeiros.

Uma grande preocupação para as empresas é a potencial eleição de juízes através do Supremo Tribunal e a virtual destruição da independência de órgãos reguladores, disse Roberta Jacobson, ex-embaixadora dos EUA no México.

A eleição de juízes poderia sujeitá-los a pressões políticas, de acordo com os críticos à medida, criando uma dependência entre eles e figuras carismáticas com o eleitorado, além de torná-los menos dispostos a decidir contra os seus aliados. A medida, disse Jacobson, também pode afetar a capacidade de empresas obterem uma audiência justa em disputas, tanto no âmbito de órgãos reguladores quanto no Judiciário.

"O que estão fazendo é manter esses órgãos, retirando deles qualquer vestígio de independência, ao transferir as suas funções para o Poder Executivo" disse Jacobson sobre os reguladores. "Isso eliminaria qualquer pretensão de independência e conferiria esse poder à presidência".

Sheinbaum sinalizou abertura para trabalhar com o setor privado, dizendo em um discurso a apoiadores na manhã de segunda-feira, que respeitará “a liberdade empresarial” e promoverá e facilitará “honestamente o investimento privado nacional e estrangeiro”.

"[É possível que ela priorize as medidas] dada a importância disso para o projeto e legado de López Obrador" disse Jacobson. "A outra possibilidade é que ela deixe o assunto definhar sem nunca pressionar por uma votação".

Um terceiro cenário também está aumentando a ansiedade entre os críticos ao governo. O novo Congresso assumirá em setembro, coincidindo com o último mês de mandato de López Obrador, o que lhe daria a oportunidade de promover as mudanças estruturais se o partido do governo conseguir uma maioria absoluta no Senado.