OPINIÃO

O Recife e Cervantes, em um novo livro

 “Deixemo-nos levar por este vento favorável que nos sopra” (Sancho Pança)   

    Foi em razão de um livro, o mais humano e solidário dos inventos, que surgiu o primeiro debate, que me lembre, sobre o peculiar perfil cervantino da cidade do Recife - uma característica formada pela atitude e criatividade de figuras do nosso ambiente cultural, do passado e do presente. A quixotesca tertúlia registrou-se em um bar-café, no tradicional bairro das Graças, o lugar em que eu vivia. Era 2005. Nessa época, comemorava-se o IV Centenário da publicação da primeira parte do livro O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha, do escritor Miguel de Cervantes. 

    A citada questão cervantina rende até hoje. Outros debates sucederam e, por consequência, a bibliografia atinente ao assunto cresceu e as pesquisas tornaram-se regulares. Com o passar do tempo, escritos surgiram, o que não é estranho, em virtude do caráter universal da literatura. Esses acontecimentos foram inspiração para este desafio livresco a que me propus, com fé e ternura. A fim de cumprir o novo ideal, saí mundo afora em busca de temas para desenvolver, etapa por etapa, percorrendo caminhos nos quais por mais de uma vez enfrentei moinhos que pareciam gigantes, de modo que, entre venturas e desventuras, muitas conquistas foram alcançadas. 

    É importante ressaltar, como essencial à construção dessa ideia, a vocação do Recife para o pioneirismo, para as lutas libertárias, para a difusão cultural e para resguardar o seu patrimônio histórico. Quanto a Cervantes e ao Dom Quixote, eles chegaram à nossa cidade mediante a leitura, carregados de humanidade e exemplaridade, no sentido de somar valores à vida, ofertando, a quem lhes lançar as mãos, melhores possibilidades para fortalecer a condição humana. 

    O belga Georges Rodenbach, no romance Bruges a morta, escreveu uma frase que bem pode se amoldar às terras recifenses, cujo povo vive sob o véu multicultural: “[...] Toda cidade é um estado da alma e basta demorar-se nelas um pouco para que esse estado da alma se comunique, se nos propague num fluido que se inocula e se incorpora com a nuança do ar”. 

    A instigante visão de Rodenbach provoca um ânimo observador para se escrever sobre cidades como a do Recife, e, nela vinculados, sobre Cervantes e sua obra, como optei. Em verdade, há um rico manancial de assuntos à espera. Àqueles que pensam em se dispor à tarefa, que tenham um lápis sempre pronto para tecer as palavras, a qualquer instante. 

    Confesso que a partir de um dado momento, tendo redigido, com muito esforço, uma quantidade razoável de colunas, todas elas veiculadas, em diferentes períodos, pelos jornais Diário de Pernambuco e Folha de Pernambuco, sobre contextos da cidade do Recife, do escritor Miguel de Cervantes e do livro Dom Quixote; bem como sobre um ou outro assunto cultural intercalado; algumas delas com a junção de temas, outras que tinham simples correlações, e, às vezes, conforme o abordado, seguindo uma intertextualidade, imaginei que, mais adiante, essas colunas, com pontuais ajustes, poderiam ser consideradas crônicas em um livro de adequada concepção. 

    Três outros textos elaborados, dois com fins específicos e um inédito, foram incluídos na obra imaginada: o artigo-ensaio Cervantes e o Dom Quixote, mais próximos, para a Revista (Livro) da Academia Pernambucana de Letras; a proposta Recife Cidade Cervantina, com a dita finalidade; e a crônica inédita Júlio Verne, um pioneiro 195 anos. 

    Assim, com lealdade à galhardia quixotesca, aqui chegamos. A luta foi árdua. O que aparentava ser um sonho impossível tornou-se realidade. Com muita honra, missão cumprida - unir o Recife e Cervantes em um encontro de História, Cultura e Arte. Agora, como diria o autor castelhano: o livro “saiu à luz, regozijados amigos” - leitoras e leitores. 

    Agradeço ao Recife, a Cervantes e ao Quixote, pela base de conhecimentos e pelo prazer em tê-los para desfrutar e viver. Nesse mérito, enalteço as “almas encantadoras das ruas” e dos lugares, pelos diálogos edificantes. 

    Em meio a tudo isso, expresso minha gratidão à Folha de Pernambuco e ao  Diário de Pernambuco, pelo prestígio de ter as crônicas publicadas em suas páginas por tanto tempo. 

    Por fim, rendo homenagens ao compatriota, amigo, professor, escritor e cervantista José Alberto Miranda Poza. ...Tive a felicidade de acompanhar Alberto em várias jornadas cervantinas, onde eram constantes os incentivos para conhecermos a essência dos ideais quixotescos. Com elevado e inesquecível gesto, Alberto fez a apresentação deste livro, por vontade própria, mesmo convalescendo de um delicado tratamento de saúde. Para tristeza de uma legião de admiradores, no Brasil e na Espanha, ele partiu para a eternidade no dia 16 de novembro de 2023. ...Alberto, em nova dimensão, já deve ter encontrado Cervantes, la Barca, Quevedo, Tirso de Molina, Lope de Vega e outros literatos, em uma venerável conferência crepuscular.
    Vale. 

P.S. 1 - Esta crônica é a transcrição literal do Prólogo do livro Sonho Impossível - O Recife e Cervantes: um encontro de História, Cultura e Arte, recentemente publicado (impresso e e-book) pela Editora Appris-Artêra - já disponível, em todo o Brasil, nas redes de livrarias, física e on-line.  
       
2 - A apresentação do livro é de autoria do professor espanhol José Alberto Miranda Poza, doutor em Filologia pela Universidade Complutense de Madrid - Professor Titular / livre-docente da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

*Administrador de empresas (UFPR) e membro da Asociación de Cervantistas