Ayrton Montarroyos (re)conta em "A Lira do Povo", narrativas do Sertão, do mar e da cidade
Novo disco do artista pernambucano está disponível nas plataformas digitais de música
Menino de alma velha, de compassos meticulosos e de resistência singular quando se trata de ir de encontro ao mais do mesmo onipresente no universo da música brasileira.
O pernambucano Ayrton Montarroyos segue dono de seus quereres, impávido e elegante em mais um fazer artístico irretocável: trata-se do álbum "A Lira do Povo" (Kuarup), recentemente lançado e disponível nas plataformas digitais, e como o próprio remeteu-se ao anunciar a novidade nas redes sociais, é um dos seus trabalhos mais intricados - e vale dizer, impactantes.
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Com uma sequência de faixas deliberadamente posicionadas para narrar em melodias as vivências de um País cujo trajeto inicia no Sertão, deságua no mar e finda no bruto do convívio urbano, o disco tem roteiro dividido em suítes, e por elas, as realidades culturais do homem são apresentadas desde a primeira parte (mítica).
"O Trenzinho do Caipira/Viola Fora de Moda/Guriatã de Coqueiro/Pé do Lajeiro" - em interpretação personalizada de composições de Villa-Lobos, João do Valle e Edu Lobo, entre outros - abrem o disco, passando pela 'lírica' com "faces coloridas, farsas de alegria e beijos sem sabor" em música de Gonzaguinha, até chegar à derradeira passagem do álbum (épica), a partir dos versos de Kiko Dinucci em "Febre do Rato", chegando "Conceição", canção de Dunga e Jair Amorim, memorável na voz de Cauby Peixoto.
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Divididas, portanto, em temas, as nove faixas de "A Lira do Povo" (re)conta histórias em meio às flautas de Ariane Rodrigues, os violões de Rodrigo Campos e a percussão e o baixo de Arquétipo Rafa, trio que acompanha Montarroyos no disco, contando ainda com participação de Rhaissa Bittar, Mari Tavares e Tatiana Burg, em coro que incrementa o trabalho. Alaíde Costa também integra a 'lira' em "A Estrada do Sertão" e "Gás Neon".
Até 1980
Para o repertório do disco, Ayrton Montarroyos trouxe à tona grandezas musicais de décadas diversas, com prevalência de canções que não ultrapassam os anos 1980, alinhavadas em interpretações, arranjos e sonoridades 'sui generes' que atravessam realidades, mas também exploram simbolismos.
Um Sertão evocado por uma "Viola Fora de Moda" (Edu Lobo, José Carlos Capinan/1973) mas também por um "Guriatã de Coqueiro" (Severino Rangel/1930) ou por uma tocante versão de "Se Tu Quiser", composição de Xico Bezerra que enaltece o set list do forró em tempos juninos no Nordeste, é um exemplo.
Ainda no Sertão, "A Lira do Povo" - cuja direção musical é de Montarroyos e Arquétipo Rafa - paira pela "Arrebentação" de Sérgio Ricardo (1971) e paira na "A Mãe d'Água" e a menina toda enfeitadinha de Caymmi, até adentrar o urbano da cidade e assim findar na vivência perturbadora do sistema agoniante entremeado em diariamentes aflitos.
Um dia a dia, contudo, abrandado pelo Carnaval de César e Cirus, em "O Ferroviário" (1973), cujos versos ditam que "quando chega fevereiro veste a fantasia e na avenida vai sambar", pois é Carnaval e, portanto, se está feliz, mesmo quando Luiz Bandeira determina que a quarta-feira ingrata chega tão depressa e por isso, "É de Fazer Chorar" (1957).
Provocativo, Ayrton Montarroyos segue, e no auge dos seus quase 30, rigoroso - consigo mesmo, como artista (e como pessoa, talvez), mas o tanto quanto com quem se presta a ouvi-lo (e entendê-lo) enquanto mensageiro de contações despejadas através de uma arte (des)construída desde sempre sob sua assinatura.
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"A Lira do Povo" é trabalho para perceber Sertão, mar e cidade nos extremos que perfazem esses espaços, dos alaridos e agruras à poesia e à arte.
Como um dos mais primorosos trabalhos musicais dos últimos tempos, o disco é sonho concretizado de um menino que "há quase cinco anos vem elaborando as direções e caminhos para a condução deste espetáculo" - atributo que resume bem o novo álbum do pernambucano.