PL DO ABORTO

Aborto legal: 1 a cada 3 mulheres precisou sair de sua cidade para realizar o procedimento em 2023

São Paulo, Recife, Rio e Belém são as cidades que mais receberam mulheres de outro município; cenário leva à interrupção em fases mais avançadas da gestação

Cisam, no Recife - Arthur Mota / Folha de Pernambuco

Um total de 1.074 mulheres precisaram sair de suas cidades em 2023, em alguns casos até de seu estado, para conseguir realizar o aborto legal no Brasil. O número equivale a 36,2% de todos os 2.963 procedimentos registrados no país no ano passado.

Para especialistas, o cenário contribui para que interrupções legais da gestação sejam realizadas em fases mais avançadas da gestação e afeta principalmente meninas menores de 14 anos.

O levantamento do GLOBO foi realizado a partir de dados do Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH), consultados pelo DataSUS no último dia 13, e informações fornecidas por sete Secretarias Estaduais de Saúde do país.

Os números mostram que 1 a cada 3 mulheres não mora no município em que fez a interrupção legal da gestação. Em São Paulo, capital, foram registrados 548 procedimentos, 189 deles de não residentes.

Na cidade, alguns centros que realizam o procedimento são o Hospital da Mulher (antigo Pérola Byington) e o Hospital Municipal Tide Setubal, Hospital Municipal e Maternidade Dr. Mário de Moraes Altenfelder (Maternidade Vila Nova Cachoeirinha).

No Recife, capital pernambucana, dos 190 abortos, 106 foram de mulheres de outras cidades. O Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam-UPE) é um dos nomes de referência no município. Foi lá, inclusive, o caso emblemático da menina de 10 anos que passou pelo processo em 2020 após uma repercussão nacional.

O cenário é mais comum nas capitais: no Rio de Janeiro os abortos de brasileiras que não moravam na cidade foram 69 dos 287. Em Belém, mais da metade, 57 dos 99 registros, foram de mulheres de fora do município, assim como em Porto Alegre, onde a situação representou 50 dos 95 abortos realizados.

Em relação a viagens entre estados, os dados do DataSUS mostram que 55 abortos foram realizados em mulheres que vieram de outra unidade da federação. A maioria dos casos ocorreu em Brasília, onde 36 dos 153 procedimentos foram em mulheres de outro estado.

Hoje, no Brasil, a interrupção da gravidez é permitida quando há risco de vida para a mulher e quando a gestação resulta de um estupro, de acordo com o Código Penal, além dos casos em que há anencefalia do feto, por entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF). Para todas as situações, não há limite de tempo gestacional na Constituição.

A necessidade de se deslocar para outra cidade para acessar esse direito é reflexo, entre outros fatores, do baixo número de lugares que realizam o aborto legal no Brasil. Segundo a atualização mais recente do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), de abril deste ano, o país tinha 158 serviços habilitados para a interrupção legal da gravidez em somente 1,9% das 5.570 cidades brasileiras, mas nem todos de fato realizam o aborto.

Para a advogada, fundadora e diretora do Projeto Vivas, organização que auxilia meninas a mulheres a acessarem os serviços, Rebeca Mendes, isso contribui para casos em que o procedimento precisa ser feito após a 22ª semana de gestação.

O tema tem repercutido após a Câmara dos Deputados aprovar, nesta semana, um pedido de urgência para o projeto de lei que equipara o aborto realizado após 22 semanas ao crime de homicídio simples, mesmo nos casos previstos pela lei.

Em abril, o Conselho Federal de Medicina (CFM) fez um movimento semelhante ao publicar uma resolução em que proibia a realização de um procedimento necessário para o aborto em fases mais avançadas, a assistolia fetal. O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu a medida.

— São muitas barreiras enfrentadas por inúmeras meninas e mulheres que precisam acessar um serviço de aborto no Brasil. A mais comum é a falta de equipamentos de saúde que as acolham. Outro problema é a falta de equipes preparadas para o atendimento — diz Mendes.

— Muitos hospitais têm protocolos de atendimento que podem levar um mês. Quando finalmente ela recebe a resposta se poderá fazer o aborto, mesmo a lei permitindo, o serviço nega o atendimento por conta do limite de tempo gestacional — continua.

Ela conta ser “muito comum” no projeto o auxílio a brasileiras que precisam se deslocar para outras localidades por terem o direito cerceado. E diz que isso é mais dramático especialmente nos casos de crianças:

— Principalmente quando falamos de meninas com menos de 14 anos, em que quando a gestação é descoberta geralmente já ultrapassou o tempo de 22 semanas. E no Brasil só três hospitais fazem esse tipo de acolhimento e estão localizados em Minas Gerais, Bahia e Pernambuco.

Além disso, muitos casos de gestação em meninas são decorrentes de violência sexual, por isso pode demorar meses até que se suspeite de uma possível gravidez. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, foram registrados 75 mil estupros em 2022, no Brasil, 76% com vítimas menores de 14 anos.

É o que destacou em reportagem recente do GLOBO o presidente da Comissão Nacional Especializada em Violência Sexual e Interrupção Gestacional Prevista em Lei da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), Rosires Pereira:

— Meninas de 10, 11 anos que engravidam por um estupro demoram para buscar o procedimento, porque muito frequentemente a violência vem da própria casa, de familiares. Podem demorar até mesmo para notarem as mudanças corporais.

O sistema do Ministério da Saúde não distingue a causa exata do aborto, se foi em decorrência de um estupro. Mas no Hospital Materno Infantil Nossa Senhora de Nazareth, único local que oferece o serviço em Roraima, 83% dos abortos em 2023 foram em decorrência de violência sexual – com cerca de metade das pacientes com idades inferiores a 14 anos.

Outro dado que ajuda a mostrar como meninas na faixa etária sofrem com a falta de acesso à interrupção da gravidez prevista em lei é o número alto daquelas que se tornam mães. De acordo com a lei brasileira, o sexo com alguém abaixo de 14 anos é considerado estupro de vulnerável; logo, toda menina que engravidar tem o direito a interromper a gravidez.

Mesmo assim, em 2022, ano do qual há dados mais recentes no DataSUS, foram 14.293 nascimentos de crianças que deram à luz entre 10 a 14 anos. No mesmo ano, somente 112 abortos legais na faixa etária foram registrados.