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Rachel Maia: o papel das empresas é fundamental para a equidade

Eleita como uma das 50 mulheres de impacto na América Latina, Rachel Maia, a primeira CEO negra do Brasil, enfrentou o desafio de atuar no âmbito da diversidade e da inclusão no mercado

Rachel Maia - Divulgação

Pensar no mundo corporativo sob o viés da diversidade ainda é, em pleno século 21, uma forma de inovar. Apesar de avanços no abrir portas para pessoas de diferentes gêneros e raças- entre outras multiplicidades-, neste quesito, a igualdade nas empresas segue insuficiente e, portanto, sem ganhar relevância devida nas organizações.

Indo mais além sobre o tema, é preciso “(...) gerar oportunidades efetivas de permanência”, como bem assevera Rachel Maia, 53, primeira CEO negra do País, que encarou o desafio de atuar no âmbito da diversidade e da inclusão para um mercado que, no imaginário social, adotava “apenas um único perfil de liderança a ser considerado: homens brancos, cis, héteros e socialmente estáveis”, como complementa. 

Caçula de sete irmãos e mãe de dois filhos, seus “maiores desafios”, é por eles que Rachel Maia se movimenta, recalcula rotas e tem urgências para impulsionar “um futuro melhor, diverso e humano”. 

Antes de ser CEO, ela se coloca como uma mulher “que vive o medo, a alegria, que se preocupa, que chora, que é forte, que é humana”. E que há pelo menos três décadas atua no ambiente corporativo, inclusive à frente da sua RM Consulting, fundada em 2018 e especializada em palestras e consultoria em mercado de luxo, experiência do consumidor e empoderamento pessoal, entre outros motes.

Eleita como uma das 50 mulheres de impacto da América Latina pela Bloomberg Línea, na terceira edição da lista anual com líderes que servem de inspiração e transformam o mundo dos negócios, Rachel Maia é a atual presidente do Conselho de Administração do Pacto Global da Organização das Nações Unidas (ONU) no Brasil.

Com passagens por presidências de empresas como a Tiffany & Co Joalheria, Lacoste Brasil e Pandora, Rachel é ainda, conselheira da Vale. E foi em meio a  dias intensos como empresária, mulher e mãe que ela concedeu entrevista à Folha de Pernambuco.

Rachel Maia: Presidente do Conselho de Administração do Pacto Global da ONU no Brasil | Foto: Divulgação

Abrir portas + gerar oportunidades 

Para Rachel Maia: “Mesmo a passos curtos, as coisas estão mudando. Em nível global, eu ainda sou a única mulher negra a ocupar a presidência de grandes empresas, e isso reflete muito em nosso atual momento. 

Obviamente, hoje, temos uma vasta gama de grupos de afinidades, programas com vagas afirmativas e políticas públicas, trainees com ênfase em raça e gênero. No entanto, ainda é necessária a revisão desses espaços. 

Não é sobre apenas abrir as portas, mas, sim, gerar oportunidades efetivas de permanência, fundamentar planos de carreira contínuos, investir em cursos e desenvolvimento dos profissionais. É fundamental, principalmente, um olhar para além da base, a fim de que eles possam ocupar cargos de liderança também. 

Ainda há o grande equívoco de colocar apenas uma única pessoa para representar o todo, como se não fôssemos diferentes, como se não partíssemos de contextos distintos. E se há diferenças, devemos ter a diversidade, equidade e inclusão como critérios de relevância das organizações, para além do quadro ou como o hype do momento.”

Meritocracia no mundo corporativo 

“Para a diversidade alcançar voos, precisaremos fazer acontecer, treinar e desenvolver pessoas que passaram a maior parte da vida — como, por exemplo, todo o ensino médio — à margem do sistema. 

O mundo corporativo precisa entender que não dá para falar em meritocracia em um País com tantas desigualdades sociais. As pessoas não estão partindo do mesmo nível.”

“Gap” social profundo e extenso 

“Além de políticas públicas, o papel da empresa é fundamental para a equidade, não apenas sob o ponto de vista da filantropia, mas também como responsável e co-autora desse processo transformatório tão urgente e necessário na sociedade, especialmente em países como o Brasil - que deixou de escravizar pessoas há apenas, aproximadamente, quatro gerações (pouco mais de 130 anos). Historicamente falando, há pouquíssimo tempo. Por isso, ainda temos tantas dificuldades e um gap social tão profundo e extenso.” 

Liderança x diversidade 

“Por muito tempo, no imaginário social, havia apenas um único perfil de liderança a ser considerado: homens brancos, cis, héteros e socialmente estáveis. Não se falava de diversidade, políticas afirmativas e programas de desenvolvimento que olhassem para os demais corpos e suas intersecções.

Durante a minha carreira, estive em grandes empresas nas quais eu era a única mulher negra a ocupar um cargo de alta liderança, e isso, de alguma forma, balança o status quo e desmistifica o homem como o único nas tomadas de decisões. 

Hoje, não sou a única, e o impacto é uma liderança mais diversa, plural e interseccional, o que resulta em representatividade horizontal, já que as pessoas passam a se enxergar em seus líderes. E os resultados passam a ser mais reais.”

Governança corporativa

“Meu propósito é sempre trabalhar para elevar as políticas de ESG e impulsionar esse compromisso direto com as pautas de Governança Ambiental, Social e Corporativa. Não é de hoje que estou nessa jornada. Minha participação nos conselhos tem um papel importante e fundamental no debate acerca das políticas de ESG, uma vez que, sem esse olhar, novos aportes dificilmente sairão do papel. 
Como conselheira, eu me coloco à disposição para que sempre estejamos alinhados com o mais alto índice da governança corporativa. E isto inclui, muitas vezes, dar alguns passos para trás, para que se possa ver o macro e as suas demandas de forma geral e efetiva.”

Carreira x família para Rachel Maia

“As mulheres das classes sociais C e D são as mais afetadas no desafio de conciliar carreira e família. Os salários que elas normalmente recebem não são suficientes para pagar outra profissional que ajude com seus filhos no período fora de casa, de trabalho. 
Dessa forma, por necessidade e falta de opção, elas acabam abandonando o trabalho e focando nos cuidados da família. 

Está na hora de pensarmos em modelos alternativos para que esse público possa ser mais considerado e incluído no mercado de trabalho. Esses modelos flexíveis já existem em países da Europa e na Austrália, por exemplo, onde a mão de obra para serviços domésticos é extremamente cara, e as mulheres que são mães precisam se dividir entre o trabalho e a família. 

Os filhos não deveriam ser um fator limitador na carreira de uma mulher. Assim como os homens, deveríamos escolher: dedicação total à família, meio a meio ou priorização da carreira. 

A escolha é individual, focada em necessidades e preferências pessoais. Precisamos de mais políticas públicas e corporativas no Brasil nesse sentido. Temos urgência e um longo caminho pela frente.”

Ponto de partida e referência

“Honro a minha trajetória até aqui, os lugares que ocupei, as decisões difíceis e fáceis, os erros e acertos, momentos bons e ruins. Todos fazem parte dessa jornada gloriosa que é a vida. 

O que vivi, seja na carreira ou na vida pessoal, veio da grandeza e merece o máximo respeito e admiração. Tenho orgulho de onde vim, é ele o meu ponto de partida e referência ”, explica Rachel Maia.

Dividir, compartilhar

“Eu tive uma infância e juventude bem humilde. Um frango tinha de ser suficiente, no almoço de domingo, para 11 pessoas, pois dois primos também viviam conosco. Dividir e compartilhar sempre fizeram parte do nosso cotidiano. 

Apesar das dificuldades financeiras que enfrentamos, como a maioria das famílias que vive na periferia, a minha família era especialmente estruturada: com pais trabalhadores, íntegros, presentes, participativos e muito amorosos. Esse ponto faz muita diferença para a formação do indivíduo como um todo. 

Adicionalmente, meus pais sempre nos incentivaram a sonhar e, acima de tudo, ter a coragem e a força para planejar e realizar nossas ambições. Mesmo sob circunstâncias desafiadoras, algumas vezes desfavoráveis, precisamos erguer a nossa cabeça, acreditar em nosso potencial e focar em nosso autodesenvolvimento. Assim, podemos nos superar e ir além das expectativas, as nossas e as dos outros.”

Universidade e um novo mundo aberto

“Inspirada por um dos meus irmãos, escolhi estudar Ciências Contábeis. Na universidade, um novo mundo se abriu: novos pontos de vista, planos, possibilidades e oportunidades. 

Acredito no poder da educação, independentemente da idade, e o que ela pode reverberar em menor e maior grau. Eu sempre fui muito curiosa e interessada. 

Estudar foi, e ainda é, a forma que encontro para me empoderar, me desenvolver e sair da minha zona de conforto e da minha realidade. Além disso, não posso deixar de destacar a importância da rede de apoio, algo que mais para frente tornou-se uma premissa no Instituto Capacita-me, de se desenvolver em coletivo.

Antes da Rachel CEO, há uma mulher aqui, que vive o medo, a alegria, que se preocupa, que chora, que é forte, que é humana. Essa mulher que é filha e leva consigo os ensinamentos do pai que me ensinou que os estudos e a preparação são primordiais, e eu o honro e o saúdo por isso. 

Uma mulher que tem a mãe como inspiração e referência, e é por ela que vejo o quanto a coragem e a sensibilidade, que podem ser vistas por muitos como antagonistas, me levaram a caminhos antes nunca sonhados. E há também essa mulher que é mãe. 

Os meus filhos, Sarah Maria e Pedro Antônio, são os meus maiores desafios, por quem eu me movo, recalculo a rota e para quem tenho, com urgência, impulsionado um futuro melhor, diverso, humano. Antes da executiva, eu sou a ancestralidade ainda em vida dos meus.”