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Declaração de porta-voz do Exército de Israel sobre futuro do Hamas expõe divisões

Daniel Hagari não é o primeiro a alertar sobre a permanência do grupo terrorista em Gaza; comentário expõe as crescentes cisões entre o premier e as lideranças do país

Benjamin Netanyahu, durante cerimônia no Memorial do Holocausto, no começo do mês passado - Amir Cohen/AFP

Durante meses, relatos sobre as crescentes divisões entre autoridades políticas e militares de Israel e o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, pareciam indicar que os desacordos sobre os rumos do pós-guerra em Gaza não eram incomuns.

Primeiro, o opositor Benny Gantz e o general Gadi Eisenkot – ambos ex-militares vistos como vozes moderadas – abandonaram o gabinete de guerra criado pelo premier nos primeiros dias de ofensiva no enclave.

Depois, o próprio Netanyahu dissolveu a estrutura, e agora o principal porta-voz das Forças Armadas do país, Daniel Hagari, contrariou o político ao declarar que o grupo terrorista Hamas não pode ser destruído.

Apesar da pressão, Netanyahu tem insistido que Israel continuará a lutar contra o Hamas, que controla a Faixa de Gaza desde 2007, até que suas capacidades militares e de governança sejam eliminadas.

Com a guerra agora no seu nono mês, porém, a frustração tem aumentado diante da falta de um fim claro ou de um plano para depois do conflito. Nesse cenário, a fala de Hagari refletiu as crescentes cisões entre o premier e as lideranças do país – além de aliados, incluindo os Estados Unidos.

O primeiro-ministro tem enfrentado críticas crescentes da administração do presidente americano, Joe Biden, por não especificar quem preencherá o vácuo em Gaza deixado pela operação militar.

Em entrevista ao Canal 13 de Israel, Hagari sugeriu nesta quarta-feira que pode levar tempo para construir uma alternativa ao Hamas no enclave palestino.

O porta-voz do Exército justificou afirmando que o grupo é uma ideologia e um movimento político que já está “plantado nos corações das pessoas”.

Na avaliação do militar, não há caminho para enfraquecer o Hamas a longo prazo sem uma alternativa – e a ideia de que é possível destruir o grupo, como apresentada repetidamente por Netanyahu, “é como jogar areia nos olhos das pessoas”.

— O Hamas é uma ideia, um partido. Quem pensa que podemos eliminá-lo está errado — disse Hagari. — Se não trouxermos algo diferente para Gaza, no fim das contas, teremos o Hamas.

A fala provocou uma resposta rápida do gabinete do primeiro-ministro, que afirmou, em nota, ter estabelecido a aniquilação do Hamas como um dos objetivos de guerra, e que as Forças Armadas de Israel estavam “obviamente comprometidas com isso”.

O Exército, por sua vez, declarou num comunicado que tem trabalhado alinhado com este propósito “ao longo da guerra, dia e noite”, e que continuará assim.

A instituição sublinhou que Hagari falou “sobre a destruição do Hamas enquanto ideologia”, e que as palavras do porta-voz foram “claras e explícitas”, de modo que “qualquer outra afirmação seria tirar as coisas de contexto”.

Guerra sem "vitória absoluta"
Apesar disso, a avaliação de que o Hamas resistirá à guerra de Israel não é nova. Em fevereiro, a inteligência militar israelense enviou um relatório para líderes do país em que dizia que, ainda que as Forças Armadas conseguissem desmantelar sua força militar organizada, o Hamas permaneceria como “um grupo terrorista e de guerrilha”.

Segundo o jornal Times of Israel, o documento elaborado pela divisão de pesquisa da Inteligência Militar do Exército afirmava ainda que “o apoio autêntico” ao Hamas continuará vivo entre os habitantes de Gaza. Sem planos para o dia seguinte à guerra no enclave, alertaram, o território palestino deverá se tornar “uma área em profunda crise”.

De acordo com o Canal 12, o documento foi apresentado ao escalão político de Israel após ter sido discutido por altos oficiais das Forças Armadas, além de funcionários do Shin Bet, a agência de inteligência israelense, e membros do Conselho de Segurança Nacional.

A conclusão apresentada na ocasião foi a mesma da anunciada por Hagari nesta semana: a de que o Hamas deverá sobreviver à guerra como um “grupo de guerrilha” – e que o fim da guerra, considerando os termos exigidos por Netanyahu, deverá ocorrer sem uma “vitória absoluta”.

Ele defendeu o ponto de vista mencionando a experiência americana com os esforços para desmantelar grupos como a al-Qaeda e o Estado Islâmico.

— O que aprendemos por meio de nossas próprias experiências é que, a partir de meios militares ou outros, você com certeza pode ter um impacto significativo na capacidade dos grupos terroristas de se financiar, treinar e recrutar combatentes, planejar e executar ataques — disse Kirby em entrevista coletiva. — Mas isso não significa que a ideologia desaparece ou morre — continuou.

Desde o início da guerra, pontuou o Times of Israel, o chefe do Exército, Herzi Halevi, falou em “desmantelar” o Hamas – e não “erradicar”.

O termo implicitamente reconhece que mesmo uma guerra prolongada não será capaz de destruir todas as ameaças militares e terroristas na Faixa de Gaza. A avaliação também é compartilhada por países árabes que participaram de reuniões na Arábia Saudita realizadas em fevereiro para discutir a reconstrução de Gaza após a guerra.

Ao jornal israelense, dois diplomatas declararam que, embora essas nações não desejem que o Hamas seja incluído na liderança política do enclave, elas acreditam que o grupo deverá manter alguma forma de influência.

Meses após essas declarações, os comentários de Hagari feitos nesta semana revelam a preocupação dos líderes militares de Israel com a possibilidade de que a responsabilização pela administração de Gaza recaia sobre eles.

É o que disse ao New York Times Amir Avivi, um general de brigada israelense aposentado que preside um fórum de ex-oficiais de segurança de linha dura.

Para ele, esta é “a última coisa” que esses militares desejam. No momento, avaliou, alguns dos principais militares acreditam que os maiores objetivos da guerra foram alcançados – e agora buscam poder focar nas crescentes tensões com o Hezbollah, movimento xiita libanês, na fronteira norte do país.

Acúmulo de divergências
Quando Gantz, o líder da oposição em Israel, anunciou sua saída do gabinete de guerra, ele acusou Netanyahu de “evitar” uma vitória sobre o Hamas. No mês passado, ele disse que deixaria a estrutura caso o governo do premier não apresentasse um plano para a guerra nas semanas seguintes.

Sem retorno sobre o assunto, ele citou frustrações com a forma como o primeiro-ministro conduz o conflito e disse que, “após oito meses de ofensivas, é necessário olhar para frente”. O esforço de guerra no enclave, que inicialmente contou com amplo apoio público, agora tem sofrido rupturas dentro e fora do Estado judeu.

A política de Netanyahu tem sido criticada mesmo por aliados como os Estados Unidos.

Após o premier afirmar, nesta terça-feira, que Washington tem retido armas – e sugerir que isso estava atrasando a ofensiva israelense na cidade de Rafah, no sul de Gaza – a Casa Branca classificou o comentário do israelense como “profundamente decepcionante e certamente ofensivo”.

A administração de Biden atrasou a entrega de algumas bombas pesadas desde maio devido a preocupações com a morte de civis no enclave. Ao mesmo tempo, o governo do democrata buscou evitar qualquer sugestão de que as forças de Tel Aviv cruzaram uma “linha vermelha” na invasão de Gaza, algo que desencadearia uma proibição mais ampla de transferências de armas.

— Estes comentários foram profundamente decepcionantes e certamente ofensivos, devido ao apoio que fornecemos e continuaremos a fornecer — disse nesta quinta-feira o porta-voz do Conselho de Segurança Nacional dos EUA, John Kirby. — Nenhum outro país faz mais para ajudar Israel a defender-se da ameaça do Hamas e de outras ameaças regionais.